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quinta-feira, 18 de julho de 2013

A Regressão



Nasci numa noite de tempestade em pleno Verão,mas por certo,não tão violenta como a que vivi em 1892
que me roubaria a vida,na tenra idade de um ano.

28 de Outubro de 1892 - O céu rasgava-se num temor único de luz e som,verdadeiramente aterrador. O vapor por várias vezes,oscilante e pouco firme,ia tentando manter-se há tona de água num mar vociferante de espuma e dor. Era perceptível as manobras de músculos e braços dos muitos tripulantes do navio sob ordens concisas do seu comandante. O ar cheirava a enxofre,revelando-se asfixiante e mortal,ante o que se poderia adivinhar. A minha cama embalava-me num sono pouco tranquilo,fazendo-me acordar de vez em vez,indo por vezes bater com a cabeça nas grades de madeira que agora rangiam dolorosas,assim como o chão que se parecia abrir,debaixo de mim. Não via o meu corpo a balouçar mas conseguia observar a Nanny (Ama) a tapar-me as pernas com o seu xaile branco,sem que dessa forma eu o mantivesse. Destapava-me,ante a sua agonia de mulher aflita em me querer proteger de algo. Até que o inevitável sucedeu. Primeiro,um rombo estóico e seco...depois,logo depois,um rasgar ainda mais tenebroso do que o dos céus nos seus muitos relâmpagos e raios malditos que assombrariam a noite. foi quando ouvi outra criança gritar que sabia e conhecia,como minha irmã,dois anos mais velha do que eu.

Mammy,Mammy...gritava a minha irmã Gladys,completamente horrorizada com o solavanco abrupto que sofrera. De seguida,em segundos que ainda lembro,o ar encheu-se de fumo,labaredas e um sem sentido que me transportaria até a,uma espécie de inferno latente. Já não conseguia ver a minha Nanny,nem quase ouvir os gritos lancinantes da minha querida irmã. Eu era pequena demais para saber rezar ou firmar-me nalguma oração que tivesse ouvido ou,perscrutado aos pais. Mas sei que o fiz. Só não sei como. Deus ouviu-me,pois sei que me segurou nos seus braços e dali me levou. Já não sentia a pele a arder,o fumo a invadir-me os pulmões e a queimar-me o meu pequeno e frágil corpo de menina,ainda bebé. No estertor da morte que não mais é,do que a esperança de uma nova vida,eu senti uma enorme leveza...uma paz indescritível,no meio de um silêncio sepulcral,deixando a Terra,entregando-me aos anjos...

Foi tudo verdade. Por anos e anos,tive este sonho,mais pesadelo do que sonho,efectivamente!
Fui investigar,pesquisar e sei lá mais o quê,e acabei encontrando. Não foi fácil mas Deus uma vez mais devia de estar do meu lado pois,por coincidência ou não desta vida,haveria de encontrar em registo num livro meu,toda a tenebrosa saga,daquele fatídico episódio,havido há dois séculos atrás.Eu estivera no local. No epicentro de um furacão marítimo em que haviam perecido 122 pessoas,de entre estas,10 crianças. Descobri tratar-se do vapor SS Roumania que zarpara de Liverpool com destino a Bombaim na Índia,onde nunca chegou. O vapor inglês naufragara,frente a um rochedo chamado Gronho. Tão conhecido por mim...estranhamente. Senti que Deus que me transpusera para uma terra pela qual eu já passara e...me finara.Tudo teria uma explicação ou...missão. A partir dali,sabia que o tinha de fazer em prestar a minha singela homenagem a essas duas pequenas criaturas,das quais eu fiz parte.

Soube posteriormente de que o SS Roumania em noite de temporal ímpar,se desviaria da sua rota normal,indo embater num baixio a escassos metros da praia. O embate partiu o navio ao meio,provocando a explosão das caldeiras e matando de imediato,parte dos passageiros e tripulantes. O rochedo denominado de Gronho,é uma escarpa temível,frente a um mar igualmente temível que ladeia a zona de Peniche e a Foz do Arelho,nas caldas da Rainha,região de berço e nascença de ambos os meus pais. Seria então inevitável,de que eu me sentisse desde que me lembre,tão atraída por aquele embuste de fuça feia em ravina íngreme de janela voltada ao mar. Nunca consegui molhar sequer os pés,na beira desse mar bravio e sem lei que nos derrubaria até a alma,caso este o desejasse. Fiquei eternidades que ainda hoje recordo,aí sentada no seu molhe altivo em visualidade ingénua do que ainda não conhecia mas sabia sentir no mais profundo de mim. Só mais tarde me penitenciei frente a esse mar,não sem,alguma morbidez de facto. Afinal,esse tão indomável mar,tinha-me levado a vida,um dia. Mas fizemos as pazes.

Vou finalizar,dizendo-vos de que estou em paz. Finalmente. Encaminhei-me para a Serra do Bouro,algures por perto das Caldas da Rainha em aldeia despontante no cimo de um monte,onde jaziam os restos mortais dessas duas infelizes meninas,no cemitério local. O meu peito latejou entre o que seria a alegria de um reencontro não muito ortodoxo ou,consensual com o que sempre me assistiu,mas fui. Não recuei na inglória missão de me ver sentir algo mais,ante aquela que fora a minha sepultura,mandada erigir e mesmo perpetuar na memória de todos,em particular nos seus desgostosos familiares que dessa forma,quereriam e desejariam evocar a lembrança dos seus entes queridos,precocemente levados da Terra. Joyce Pollard de um ano de idade e Gladys de três anos de idade,ambas lado a lado,na lápide exposta a poente do cemitério,em placa comemorativa - ali colocada cem anos depois - pela comunidade britânica,expressando: -"In Loving Memory"

Não pretendo usurpar estas identidades. Não ,de todo. Apenas dar acalmia a pesadelos que ao longo dos anos possuí sem saber da razão. Acredito na reencarnação,em vidas passadas e quiçá,futuras. tenho a minha fé sem ser fundamentalista. Rezo por vezes. Ouço-me em oração interna como interiorização maior ou expiação de pecados que julgo não ter. Não sou mais nem menos do que qualquer outro cidadão comum que pertence a este grande mundo global,determinando-me portuguesa,europeia (por enquanto...vamos ver) e mulher quanto baste. Não sou feia nem bonita,nem mais burra nem mais culta,acima da média. Nem o pretendia. pode ser fatal. mas acredito em valores maiores que nos regem nesta vida. Somos seres espirituais e muito mais do que nos fazem crer à nascença. Não sou perfeita,apenas humana. Posso até ser uma básica. Uma vulgar e,Primitiva,Selvagem e Perigosa amostra humana como nos consideram os "outros",os que estão acima de nós,os do "outro lado". Sem dúvida que nos são seres superiores,na parte científica da coisa,pelo menos!...Quanto ao coração,e a um alma nossa,isso já é outra coisa. Ou talvez não... quanto a mim,só quero ser feliz.
Como,todos nós...suponho. Bem-Hajam!

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