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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A Assombração

Páscoa do ano 1971

"A mulher chorava copiosamente como mulher de marinheiro quinhentista, deixada no cais a acenar para um seu homem, fantasma já, do que lhe desaparecia no horizonte..."
 

Algures entre o vale da Amoreira (Óbidos) e a aldeia do Pó.

Lembro-me de que tive muita pena dessa mulher. Parecia viúva de homem vivo mas ausente do seu colo, do seu carinho, do seu afago de mulher só ou, mal amada. Chorava muito e isso, comoveu-me deveras.
Eu só tinha onze anos de idade - naquela mutação doentia da menarca em que se não define ainda, a fronteira de se ser menina ou mulher...- mas aquele pesar imenso, confrangia-me. Quanto mais me abeirava de si, mais esta se afastava de mim. Parecia não querer consolo ou comiseração de ninguém. Era uma estranha figura de negro dos pés à cabeça. Não era uma mulher jovem mas também não se poderia afirmar que fosse velha. Os lamentos que exalava em uivo de dor, ainda hoje os oiço, ainda hoje os sinto, tão calamitosos, tão sofridos.
Foi então que, em segundos indistintos, a figura dessa triste mulher se esfumaria, desaparecendo do meu campo de visão. Eu era míope, eu sei. Mas nem que chovessem trovões, eu haveria de reconhecer, ter sonhado aquilo. Ela podia não ser de carne e osso como eu mas, que eu vi, eu vi!
Ela sofria. Disso, não tive dúvidas!

Corri em busca da minha avó que estava em prosa eloquente com uma das vizinhas, estranhando a minha súbita intromissão, àquela hora matinal. Geralmente só aparecia para almoçar, o seu peixe frito com pão em alho e azeite - refeição pobre e singela mas que eu adorava e ainda hoje lhe sinto o gosto - galgando de novo para o rio em procura de girinos ou para o pinhal em apanha de pinhas ou brincadeiras com os amigos.
Naquela manhã eu estivera só, apanhando pinhas e bugalhos que a avó me pedira para acender melhor o borralho da sua velha cozinha. Viera de mãos a abanar o que a avó estranhou. E perguntou-me a razão. E eu disse: - Foi o susto, avó!!! Aquela senhora de preto...estava a chorar muito! E eu (balbuciei) cheguei-me a ela, mas não consegui e...de repente...fiquei com muito frio, muito frio! E depois ela...desapareceu!...Foi assim avó, de repente! - e ia tentando explicar com as mãos e os olhos muito abertos, a situação vivida.
 - Ah, já sei! Encontraste-te com a Ermelinda, não foi? Está sempre a chorar, pois está, coitada!...Foi-se-lhe o marido na guerra de 14, coitada...tinha casado há pouco, a pobrezinha...

Pensei que a minha querida avó endoidecera de vez, também. Guerra de 14?...1914...? A Primeira Grande Guerra...? Eu era jovem mas não era estúpida de todo. Para ser viúva de um homem desse tempo, ou era podre de velha (ainda mais velha do que a minha avó que já contava muitos...) ou já teria morrido, achava eu. E ela não me parecera ser nenhuma velha...nem mesmo que, marcada pelo desgosto, considerei.
- Pois neta...- dizia-me então a avó, já mais condescendente com o meu sobrolho carregado, mostrando-lhe a minha incerteza da coisa. E ela: ouve...anda cá...(e abeirou-se de mim em perfeita lucidez do que lhe via na alma doce) não ligues muito ao que viste. Sabes netinha, aquela ali, já não faz mal a ninguém, a pobre! Mas isso...foi há muito tempo! O marido morreu-lhe e ela, morreu a seguir.
- O quê??? - emiti em som rouco mas profundo, por uma curiosidade de certa forma mórbida e anunciadora de mais uma história haver para contar aos meus netos, senti. E, como tudo isso fosse mais forte e obreiro em mim do que o medo do que pressentia, a avó me ir dizer em quase segredo seu, ainda esbocei: - Vá avó...conta-me tudo. Eu quero saber e...juro que não tenho medo, avó!...Mas  tinha! A avó, é que não suspeitava disso ou...talvez sim.
- Pois é, minha neta...( e isto, já parecia um diálogo do capuchinho vermelho com a avó-loba mas de forma invertida...para adultos, suponho) ela é...como te hei-de dizer...uma pobre alma que anda por aí a penar, pois assim que soube da notícia da morte do marido, vestiu-se de negro e foi para os campos. Coitadita...sem um filho sequer a que se agarrasse, pois que a pobre nem isso havia para deitar mão e lutar por viver. Talvez se...(dizia a avó, perdida em mil pensamentos de um passado remoto mas bem presente em si) talvez se a pobre Ermelinda tivesse tido no buxo um filho...quem sabe...? E não se mataria assim...não sei mesmo, neta, não sei mesmo!?...
- E...como foi, avó? - Acentuava eu em delírio infantil e um pouco desconexo com a fatalidade em questão.
- Olha rapariga...(aqui a coisa complicou-se. Parecia estar a invadir-lhe os pensamentos nefastos, violando-lhe a descrição que quereria fazer em justiça e honra daquela mulher suicida) bem...não sei se são coisas para a tua idade mas, cá para mim, foram coisas de mente fraca, sabes? A pobre não aguentou o sofrimento e aí vai disto...matou-se com uma corda ao pescoço, enfiada numa árvore e o rosário aos pés que lá lhe terá caído na hora da aflição, não é? Pobre Ermelinda! Era tão boa rapariga!
- Ó minha avó, que triste! - e agarrei-me a ela a chorar também.
- Não chores neta...isso, já foi há muito tempo! E olha...ficas já avisada! Nada de ires para aqueles lados, ouviste! - e apontar-me-ia o dedo em riste na posição firme do que me negava em maiores ou intensos pormenores de um capítulo fechado. Sem mais! E eu, impotente mas obediente:
- Sim, minha avó. Nunca mais. Prometo!


Mas fui. Só que nunca mais a vi. O que recordo, foi de lá ter deixado um certo dia, ainda antes de retornar a Lisboa em fim de trimestre escolar, umas lindas flores do campo que coloquei por perto onde tinha visto a infeliz a chorar.
Ainda hoje recordo aquela triste e desolada figura em desânimo, em quebranto puro de si. Fiz-lhe uma reza ou oração, na época a única que sabia nos meus infantis onze anos de idade. Pedi a Deus que a deixasse descansar em paz, pedindo-Lhe que lhe entregasse as minhas flores que eu desejei ardentemente que esta recebesse no Céu e para mim olhasse como uma última sua amiga, aqui na Terra. Deus deve tê-lo feito, penso. E oxalá, tenha ficado em paz mesmo, almejando voltar um dia à Terra mas de contrária sorte ou destino haver, ainda que, por um grande amor ter vivido e, amado cá em baixo. Oxalá, tenha reconquistado a alegria, o amor e, a juventude perdidos. Oxalá! Descansa em paz, Ermelinda!




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