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domingo, 18 de agosto de 2013

A Batalha

15 de Agosto de 1969

Fado, Fátima e Futebol: os três ícones da minha Pátria Lusa.
Pela Família e pela Pátria! - nos desígnios nacionais de um Estado Novo, agora (de forma tangencial é certo) mais aberto por um governante de seu nome, Marcelo Caetano. Aspiravam-se novos tempos em esperança algo contida mas premente. Ouvia-se a Amália cantar (fadista de renome), os relatos semanais de futebol em domingos sucessivos e, as eloquentes homilias reverenciais a uma religiosidade extrema de cariz, católica- romana nessas austeras e intermináveis missas pelos dias do Senhor ou de referência, no Santuário da Nossa Senhora de Fátima, em Leiria a cada 13 de Maio.

Eram rotinas que não se quebravam e muito menos, se desrespeitavam. Como os Verões. E estes, a cada ano que passava, igualmente reverenciais e magnânimos, vividos em família numerosa, de pais, tios, primos, avós e outros aparentados que se chegassem ou vizinhos alados. Os meus, eram assim. Andei de burra - enfiada em cestos de vime - corri fazendas inteiras, aspergindo o ar puro das serras e dos morros silvestres, percorrendo léguas de uma vivência única. Fui feliz. Ainda hoje sinto o cheiro do feno doirado, envolto em arremesso de mão de homem, instado na natureza em bonomia e fartura de colheitas suas. Toda essa ambiência rural, me era prazenteira e de uma felicidade que não mais encontrei. Tão feliz que eu era, e não sabia...

Naquele feriado, plantado no meio do mês de Agosto em que os pais tinham ido com uns familiares e amigos - recentemente chegados de França - a uma homilia em Fátima em devota peregrinação confinada ao dia do imigrante (recolhendo bênçãos e protecção para todo o ano) e nos deixariam então ao cuidado de tios e primos. Nesse dia, atulhados no Fiat 850, vermelho escuro do "bólide" do meu tio (ajoujado que dava dó) sem que soubéssemos como teríamos cabido em tão exíguo espaço. A minha tia, que era uma moçoila roliça de carnes e de alegrias, enfiar-se-ia assento adentro (o dianteiro, e seu por direito) como trono indiscutível seu, aconchegando a cesta da renda, o saco do farnel e o canino mal-cheiroso que levava ao colo. Adoro animais mas aquele protótipo de cão, que passava a vida a rosnar-nos como se fosse um pitbull e a tentar roer-nos os tornozelos como se estes fossem o seu jantar em osso preferido, dava por vezes ganas de o assustar também em correrias loucas atrás de si, ante a fúria dos tios que o tratavam como a um filho mais. Não intentávamos aborrecer, apenas brincar com a sua tão grande ruindade canina, até pela razão dos tios nos poderem deserdar do seu seio familiar, acaso prejudicássemos o pequeno e terrível bicho de dentuça afiada e orelhas espetadas.

O dia estava soalheiro. Quente, muito quente. Não fomos longe. Apenas uns quilómetros até à Serra da Roliça - na zona oeste e perto do Bombarral - onde havia grutas, enseadas e esconderijos por entre matas e silvas, fazendo a nossa imaginação fluir em vasta progressão de meninos que nós éramos.
O tio foi apanhar restolho e, a tia, ficar-se-ia pelo seu trono sentada, ouvindo a senhora dona Amália Rodrigues cantar (em arrasto e perdição de amores não correspondidos...) fazendo renda como quem faz um filho, com um sorriso nos lábios e outro, no coração.
A criançada toda, subiria então o monte de gravilha, sebes e calhaus enormes entre uns desníveis e outros que se nos iam deparando em efusiva constatação. Éramos cinco. Iguais ou nem tanto, os dos episódios de leituras havidas de Enid Blyton (mais uma vez). Éramos como uma quadrilha autorizada mas sem rumo certo. Desabridos e à descoberta de novas aventuras, percorreríamos a serra em montes escarpados de mil histórias por viver e, desbravar, sentíamos. os meus primos dispersar-se-iam, soltando gritos lancinantes de alegrias e liberdades haverem e eu, mais compassada e lenta (começara a engordar e o rabo, pesava-me...) deixara-me ficar para trás. Sentei-me numa pedra. Foi quando ouvi, por detrás de um arbusto, algo. Algo, que subitamente suscitaria a minha curiosidade. Podia ser um animal...grande...e assustei-me! O meu coração começou aos pulos. Queria gritar pelos meus primos mas mesmo que o conseguisse, eles não ouviriam. Abri a boca de espanto, então. Dos arbustos cerrados, emergiam em solavancos e passo arrastado, duas pessoas. Dois homens. E que estranhos eram!...(notei)
Vestiam casacas vermelhas e botas pretas de cano alto. Usavam chapéus esquisitos de abas largas e traziam nas mãos, umas espingardas que eu não conhecia (na época, eu só tinha nove anos de idade e como tal, os meus conhecimentos históricos de datas, situações e indumentárias, não serem ainda muito precisas...).
Não me mexi. Deixei aquela estranha ocorrência dar-se na minha frente como se eu estivesse a ver um filme ou série televisiva e não ali, exposta perante si. Eles pareciam que não me viam, ou então, ignoravam-me. Falavam entre si numa língua que reconheci ser a da segunda apanha dos meus tios, emigrados agora em França - os mesmos que tinham ido com os pais a Fátima.
Vinham feridos, calcinados por uma dor imensa que espelhavam nos rostos sofridos e, nas feridas abertas que lhes via em conotação colorida do que supus ser sangue e fluido hemorrágico.
A minha garganta secou e as minhas pernas latejaram. Não estivesse sentada no pedregulho farto e teria desfalecido, caindo por terra. De seguida, estes dois homens, ambos fracos e perdidos - do que posteriormente me apercebi - deitar-se-iam na relva, lado a lado, rindo em gargalhada folgada mas ferida também, do que sabiam estar prestes a suceder. A vida despedida neles, dar-lhes-ia um último sopro de esperança no estertor da morte e da inutilidade esbracejada de uma sobrevivência ignóbil.

O Sol, incidente nestes, acolhê-los-ia em almas que partiriam em conjunto. sem obstinação ou revolta. Numa entrega sua que considerei no momento, plena de magia e iluminação ímpares. Eles estavam felizes no fim. Pareciam felizes. Vi assim desse modo, as suas almas subirem aos céus com a mesma dignidade com que se haviam deparado com o incontestado por si, de se deixarem partir, rumo ao céu. Foi então que, (continuaria a observar) que uma luz imensa viria, caindo sobre eles, sobre os seus corpos e almas. A luz era imensa, incandescente e ofuscante, não me magoando os olhos estranhamente...admiti. Não me feria a vista apesar de ser tão míope, reconheci também. Quando olhei para o chão - o que instantes atrás, albergaria aqueles dois homens de fatos esquisitos - eu já nada vi. Sei que tirei os meus óculos e friccionei ambos os olhos em jeito de certificação, ou não fosse eu estar a ficar ainda mais cega do que já era, anotei.
Sei que tornei a esfregá-los, sentindo já uma leve irritação nos olhos e, em mim pelo que me submetia à veracidade ou não de estar a viver uma alucinação, congestionada ou, sugestionada por algo que eu não sabia. Mas quando tudo serenou e só o Céu, as nuvens e o chilreio dos pássaros me voltaram a cercar, é que eu esbaforida e desaurida, me vi galgar por ali abaixo, tentando depois explicar aos tios, a visão (ou projecção) que tivera e o que de si, observara.
Chamaram-me de tonta e riram-se ambos de mim, por me saberem muito imaginativa e, de mente solta, assim que me deixavam ao vento, diriam ambos em troça evidente. Amuei. E calei-me então. Mas, sem consolo ou conformidade com o que os meus olhos tinham visto e, presenciado.

Só mais tarde rebuscaria em livros, enciclopédias e afins, o que existencialmente em prospecção de um passado não muito remoto, se dera ali e eu tinha havido a felicidade de conceituar no assomo histórico que visionei.
Por princípios do século XIX, na data de 1800 e tal (1808-1810) e invasão napoleónica por terras lusitanas, dera-se ali, a célebre e mui vitoriosa Batalha da Roliça (e Vimeiro) em que, os nossos valentes homens soldados - e pouco armados pelo que estudei - homens do meu povo, terão expulsado e quase aniquilado a força invasora francófona a mando de chefias militares sob ordens de Napoleão Bonaparte.
Fiquei esclarecida e feliz. Eu, por algum motivo, tinha sido escolhida como testemunho histórico. Senti-me privilegiada de o ter registado. Creio que, em honras enaltecidas e obreiras de Deus ou de alguém a seu mando também, eu perfilharia do senso comum de que a História para ser estudada e conhecida, tem de ser primeiro, vivida. Nunca tal, me foi tão bem dado a conhecer e, provar desse facto. Honrarei então, esse testemunho e aqui o deixo para vosso conhecimento em igual demonstração escrita do que sei não ter sonhado mas ocasionado. E feliz, muito feliz por ter feito parte, ainda que à posteriori, da bravura de outros tempos e ainda que, por imagem de outros que aqui morreriam em terras não suas. Mas honras lhes faço também, pois penso que no seu derradeiro momento de verter sangue e pouca glória numa terra que lhes não pertencia, terem feito jus à sua condição de invasores incómodos e não crentes de nos ceifarem alqueires, terras e céus, pois que os dos seus corações, estariam longe. Teriam pedido perdão, senti-lhes isso e Deus levou-os nessa abnegação de fim de vida. A História nem sempre é justa e por demais cruel mas neste caso, ambos partiram em paz.  E eu, fui testemunha disso. Apenas isso e gostei. Deus concedeu-me a imagem aberta de um livro de História e eu fiquei para sempre, fã e refém dessa adoração, aquém e, além mar. Das nossas bravas aventuras e conquistas e, das dos outros pois que a História é magia corrente, de homens, mulheres e todo um povo global que século após século, se faz vivificar. A bem de todos!

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