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sábado, 31 de agosto de 2013

A Lápide

São Petersburgo - Janeiro de 1917
 

Fazia muito frio mas nós riamos e brincávamos nas estepes geladas como se estivéssemos em plena canícula veraneante. As minhas irmãs, Olga, Tatiana e Anastasia entretêm-se a mandar umas contra as outras, os novelos e bolas de neve que caiem em flocos, desfazendo-se, não magoando ninguém. Eu detenho-me mais em comoção da beleza glaciar do que na investida de corrida e lançamento dessa alegoria festiva das minhas irmãs. Vigio o meu pequeno irmão que sabe retirar-se da demanda de empurrões e desvelos dos flocos sobre si, até porque a perceptora não deixaria sequer. Ele não se pode magoar. Tem uma doença rara e estranha que a mamã nos sonega da gravidade mas não consegue esconder da igual aflição, assim que o Alexei se magoa. Fica com umas nódoas negras imensas, espalhadas pelo corpo sem que estanque a coloração e, a hemorragia certa em si. Não pode haver negligência nem trato de menino que ele é ou o papá reverte-nos em castigo exemplar, de não nos deixar sair um bom par de semanas até aos campos, até ás nossas brincadeiras de raparigas felizes que somos, simplesmente por sermos filhas do czar da Rússia.

A mamã (Alexandra Fedorovna) e, czarina da Rússia, mantém-nos à distancia, sentindo todas nós, uma certa preferência pelo nosso irmão mais novo, pela doença cingida neste e também, pela deferência premente com que a encara, pedindo ajuda e auxílio constantes ao senhor Rasputine. O papá não gosta dele mas tenta que isso passe despercebido à mamã que o adora na veleidade e subtileza da maleita de Alexei.
O senhor Rasputine tem o dom de apaziguar a mamã, que não a doença do meu infeliz irmão menor, que sofre horrores nas equimoses e hemorragias latentes, assim que é despoletada qualquer queda ou jeito requebrado que o faça cair ou magoar. É devastador. Tanto a sua dor de menino, como a da mamã que nada pode fazer nem os médicos em seu redor. Ouve-se dizer nos corredores do palácio, de que é a mamã que governa, os súbditos, o pai e todo o país reinante. Que nós, somos umas princesas mimadas e fúteis que só nos preocupamos com o que vestir e o que apresentar em corte real. Mas isso não é verdade. Nós sabemos línguas, tocar piano e cantar operetas que a mamã faz questão que aprendamos pois um dia ser-nos-à útil nas vidas futuras de cada uma de nós. Espero que assim seja, pois eu quero contrair matrimónio um dia, com o meu príncipe encantado da Rússia ou...de outra nação que o papá aprove. Desejo isso. Espero por isso como esperei anos, para me ver ser apresentados os príncipes consortes, meus e, das minhas irmãs; ainda que, há distância de um punhado de vales e montanhas brancas, para lá, da nossa mater e amada mãe Rússia. Sou bela, muito bela...dizem-me, e tenho a vida toda para o comprovar!

17 de Julho de 1918 - Iekaterimburgo

Não sei o que está a acontecer. Fomos levados para outro sítio. Estamos num sítio horrível. Eu tento não chorar mas não consigo. Apesar de não estar frio, eu sinto as mãos e as pernas geladas. As minhas irmãs, mais contidas e mais caladas - talvez pela razão que lhes assiste de não quererem mostrar medo, sinto - vão revezando-se em entregas de sorrisos tímidos e solventes para com os bolcheviques que à bruta e sem modos alguns, as empurram e lhes gritam para serem mais expeditas no passo e na caminhada.
Fomos sequestrados todos. Toda a família e nem as súplicas da mãe, para que deixassem ficar e subtrair das suas intenções, o meu irmão doente que não sucumbindo à terrível doença, reportar-se-ia agora corajosamente morrer, às mãos destes homens barbudos e maus que nos tomam de freio e razões suas.
Vociferavam-nos de que agora não tínhamos poder algum sobre nós ou, sobre as nossas vidas e muito menos sobre a monarquia e realeza deixadas para trás. Sufocavam-nos com as suas garras malditas, falando e cuspindo perto de nós, sobre os benefícios e alegrias de uma ideologia nova e obreira, chamada de comunismo que iria ser o futuro das nações. Nós ouvíamos cabisbaixas e trementes, receosas e indulgentes perante tamanha verbosidade leiga e de controversa sintonia. Temíamos pelas nossas vidas mas ainda assim acreditávamos que algo ou alguém nos poderia salvar. Era no que acreditávamos, pois só nos restava isso.

Fomos arrastados de madrugada para fora daquelas camas incómodas e feitas de barbas de milho que nos deu comichão e fez vergões no corpo, não nos deixando dormir. Mesmo que, nenhum de nós o conseguisse, de facto. puxaram-nos para fora dos leitos com quem puxa o gado para pastar, dizendo-nos que nos perfilássemos uns contra os outros bem juntos. Não entendemos a finalidade. Segundos depois, foi óbvio o que iriam fazer de nós. Eles eram muitos e sisudos, carrancudos e de tez carregada, façanhuda. Não íamos ter sorte alguma de alguém nos vir salvar das mãos deles, sentimos. Todas chorávamos. A mamã pedia-nos contenção nas lágrimas e na desfaçatez havida nela também, de nunca se mostrar qualquer emoção mais contrária a si, revelando-se uma mulher de aço, de mármore ou...sem coração. Mas coração tinha. Ou não vincara em suas mãos, o meu irmão Alexei que estremunhado e ainda pouco elucidado para o que lhe iria acontecer, se deixou refugiar em colo materno mas não isento da verdade aterradora de se poder salvar de entre nós. Ninguém podia. Nem mesmo ele, sendo tão pequeno ainda, pensei.
Depois, em momentos que deixei perder no ar, sob uma camada de gritos não socorridos e deveras aflitos, deparando-nos com a sujeição máxima de observar em total horror e impiedosa punição, as armas em riste de uns quantos soldados, sujos e maus que nos iriam crucificar em fuzilamento geral, naquela triste e horrenda manhã de Julho. Uma rajada de tiros de espingarda e nada mais. Caí sobre a minha irmã Anastásia...como um fardo pesado de palha ou arbusto solto de uma qualquer estepe perdida no mato. Senti um zumbido nos ouvidos e depois uma luz. Vi as minhas irmãs comigo. O papá e a mamã também. O pequeno Alexei estava junto da mamã e eu, por instantes lembro-me de ter perguntado sem ter voz ou patente para tal, na ausência de minha irmã Anastásia. Não a vi. E sei que não subiu aos céus connosco. Vi o meu corpo sangrando sobre ela e os restantes em que se viram, já depois de cadáveres (suponho) ser trucidados e vilipendiados pelos soldados que, com a biqueira das botas e dos terminais dos canos das armas, os iam espicaçando, vendo ou querendo detectar algum resquício de vida terrena em nós. Mas estávamos mortos, todos mortos...à excepção da minha irmã Anastásia.

Voámos para longe, muito longe. Mas observamos ainda o que os nossos algozes fariam de nossos corpos, postos em vala comum e a céu aberto. Como gado que morre de repente ou por maleitas próprias, assim fomos despejados, depositados e...esquecidos naquela vala de morte com uma só lápide de pau, determinando o sítio e o jazigo de toda a família Romanov. Olga, Tatiana, eu Maria, Alexei, a mamã Alexandra e o papá Nicolai. todos juntos. Menos Anastásia. o seu tempo na Terra não estava terminada, pena é, que nem a vovó o tivesse consentido e arrestado em vida. Não o admitiu ou...não o quis admitir. Sei que a minha irmã Anastásia, passado o horror da chacina e da inglória promessa de uma vida futura feliz, se terá quebrantado à evidência de esquecer também ela, o seu passado distante da sua terra, a mãe Rússia, vindo morrer à terra das luzes e, de uma torre altiva de seu nome Eiffel. Morreria em Paris, já muito velhinha e eu...bem, eu fui recebê-la então e abracei-a como há muito o não fazia, enchendo de luz, muita luz a minha querida irmã Anastásia que apenas e somente, vivera mais um tempo do que eu na Terra. Cumpriu a sua missão e eu, cumpri a minha: libertei-me do medo e do receio das trevas, pois vivo no céu. Até ao dia em que reencarnar quando Deus quiser. Até lá, vou rindo e brincando nas geladas estepes da minha amada Rússia que já não é minha e outra terei, assim Deus quer e eu, alcançarei. Eu...Maria.

A família Romanov foi executada no dia 17 de Julho de 1918. Ironicamente, no mesmo ano em que acabaria a Primeira Grande Guerra. Após a insurreição de Petrogrado, o czar Nicolau II foi obrigado a abdicar em Março de 1917. De pouco lhe valeria, a ele e a toda a sua família que sucumbiria às mãos dos bolcheviques em revolução assente na mudança dos tempos e que, curiosamente também, seria evocada em terra lusitana, por uma "Senhora de Fátima" em anunciação de ataques e submissão sangrentas sobre o seu povo, o povo russo de uma terra chamada Rússia.
Por tempos imemoriais, teriam ficado espalhados e desconhecidos, os restos mortais da família eliminada, a família Romanov. só há pouco tempo - depois de exaustivamente procurados e descobertos, analisados e autenticados - é que estes restos mortais consistentes em ADN, seriam então devolvidos à terra mãe. Que repousem em paz. Todos. Ainda que tenha levado algum tempo, para que todos assim se reunissem em póstuma homenagem do que a História tem de repor e, rectificar. A bem da humanidade!

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