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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A Viagem

Os olhos são o espelho da alma!

1980 - O ano de todas as loucuras. Boas e más. A boa, por M. Yourcenar ser a primeira mulher na Academia Francesa e Vigdis Finnbogadottir, a primeira também, a desempenhar a chefia do Estado na República da Islândia, como mulher.
As más, os sismos, os vulcões e os assassinatos; nos Açores, no Estado de Washington (vulcão Santa Elena) e a morte trágica por um homicida psicopata de John Lennon. Em Portugal, a queda fatal de um «cesna», avião pequeno que transportaria o líder social democrata, Francisco Sá Carneiro e o centrista Adelino Amaro da costa, matando ambos e restante tripulação e acompanhantes.


Estas ultimas tragédias, dar-se-iam no terceiro trimestre do ano e como tal, eu ainda estar longe, muito longe das mesmas em felicidade anunciada da viagem a que me propusera fazer com uma amiga minha a Inglaterra que só mais tarde rectificaria nos desígnios de se chamar, Reino Unido.
Para quem possuía vinte anos e abraçava o mundo, isso pouco importava. O mundo era meu e eu, gostava disso. Não havia doença, peçonha ou maleitas de maior que me derrubassem no querer de ter asas e voar do meu ninho circunstancial de pais obreiros mas pouco dados a grandes aventuras fora do seio nacional em labuta e trabalho quotidiano contínuos. Umas idas à terra, uma aos Açores com tios e primos e outra ao Algarve em conhecimento mais profundo de um país tão «grande» que se faria num dia inteiro de automóvel. Mais ou manos. Perguntassem agora ao fundador e rei D. Afonso Henriques que o terá feito em montada aberta e veloz, e certamente a resposta não seria essa. Para além do « Al Garbe» que lhe deu água pela barba, que é como quem diz, levou o seu tempo e as suas agruras a tomar, a conquistar aos mouros.

Por meados de Maio desse mesmo ano, Londres tinha sido alvo de um ataque terrorista, sitiado na Embaixada do Irão, onde três homens fortemente armados e hipoteticamente suicidas, se haviam barricado, retendo e ameaçando reféns. Conclusão: quatro mortos a verificar e, cinco feridos graves. E esta, foi a certeza de que o mundo estava perigoso, daí que estivéssemos atentas (eu e a minha amiga) de não nos pormos a jeito em experiencial rumaria de actos menos comuns ou sensatos na jovialidade que exibíamos e precocemente vivíamos. Havia que ter tento. e fazer dessa viagem, a primeira e boa aventura de uma liberdade exígua de amarras soltas de ambos os nossos respectivos pais. Havia que merecê-lo também ou nunca mais nos deixariam sair sozinhas nem sequer para a Trafaria...

Eram dez da manhã e o sono (muito) acumulava-se em nós pela ansiedade com que encararíamos aquela viagem de avião pela TAP, munidas de malas, roteiros e sonhos...muitos sonhos. Não era ainda muito comum que, duas adolescentes de idades e ideais semelhantes, se investissem a sós, pelas nuvens adentro sem familiares a fazerem de «chaperon». Estávamos esfuziantes. Ríamos por tudo e por nada numa alegria imensa e, para nós, infindável. Uma loura e outra morena como se quer, e lá fomos, deixando para trás a família e a terra que nos vira nascer como se não mais voltássemos. Enchemos o peito de ar, sentando-nos lado a lado, coisa que depressa se alteraria por a minha amiga mais entusiasmada do que eu, se ter dado de conversas e folguedos a um conterrâneo nosso, jovem também mas de olhar matreiro sob um bigode ralo e um ar trocista que não gostei de imediato. Para mim, todos eram terroristas. Possuía uma infame apetência para imputar a todos os que me não agradassem de visual mais escorreito, em pessoas de maus intentos e más elaborações de revolver na mão e granada na outra, fazendo explodir tudo em seu redor. observava a tripulação com o mesmo critério que seleccionaria os iniciais amigos, vendo nestes potenciais inimigos de um futuro próximo. Eu era muito insegura, eu sei. Mas os ventos soavam violentos e imprecisos pelo que ouvíamos de tempos a tempos de desvios de aviões e tomadas à força de guerrilhas internas e intestinas de um certo fundamentalismo do Médio Oriente.

Chegada a Londres - e bem - sem ocorrências de maior que não fosse a mexida dos tabuleiros da comida de plástico que serviram, nada demais. Ainda olhei de soslaio para um elemento que vinha sentado no banco de trás de nós e que me parecera ser de terras da Judeia, pela tez morena, olhos profundos de águia real com que a tudo anotava, como que querendo fazer relatório geral dos que se haviam sentado em seu redor. Pensei tratar-se de algum elemento da Mossad, tal a sua postura, mas depressa retirei essas especulativas apreensões minhas sobre semelhante figura, registando que deveria ir em espécie de lua de mel, pois que a sua companheira, mulher lindíssima, o presentearia a todo o momento com beijos, assomando estar completamente apaixonada. Não íamos para Israel nem estávamos num avião da «El Al« mas o meu sentido único de uma imaginação fértil, ganharia asas, tão grandes ou maiores do que as que para ali me levavam.

Mas a aventura agora começara. e tudo se passaria de comum acordo com as perspectivas de ambas. Fomos a museus, a jardins públicos magníficos, presenciámos a guarda real em manobras distintas e fieis ao que nos tinham dito de si, em autêntica euforia de tudo sorvermos em surreal demonstração do que ainda nem acreditávamos ter sido possível de visitar a sós. Era tudo maravilhoso!
Numa dessas saídas em que a minha amiga parecia querer comprar toda a capital em roupas, perfumes e cosmética (não que eu fosse menos fútil no momento mas mais pela razão, de não ter a carteira tão bem recheada como a dela...) eu deparar-me-ia com a situação mais inusitada e em certa medida disparatada de toda a viagem por terras de Sua Majestade. Estava eu no compartimento de vestuário de provas, quando me entrou de rompante uma mulher, jovem ainda ao que supus pelos seus lindíssimos olhos enormes de cor de jade, gesticulando em aflição permanente, ficando de cócoras num dos cantos do vestíbulo. Parecia muito assustada, buscando refúgio e comiseração da minha parte. Fui apanhada de surpresa que nem tempo tive para reagir. Ela vestia uma burka negra, tão negra como a noite escura de breu imenso como antigamente as viúvas da minha terra que se cobriam até aos ossos em lamento e recolhimento pelos maridos falecidos. Foi então que, numa fracção de segundo, ouviria uma voz exaltada, tenebrosa mesmo, gritando por: Alia!!! Alia!!! - e após isso, uma algazarra de palavras em árabe, supus mas não traduzíveis para mim do que aquele homem dizia. só tive tempo de lhe dizer, abrindo uma pequena fresta da cortina do vestíbulo: Xô!...Xô daqui! E só depois: "Go out! Go, please!
Estava tão ou mais assustada do que a pobre criatura de negro ali enfiada. E, parecendo eu, estar a enxotar galinhas no que me lembrei em desespero de causa, lá veria o sujeito indemne a vociferar palavrões (senti) pelos vestiários femininos, não sem antes duas empregadas da loja o tentarem (em vão) segurar e tirar dali.

Momentos trágicos. Sentia-lhe o medo, as pernas trementes, a voz sumida e os olhos, Santo Deus...exprimindo dor, angustia e terror, muito terror de algo que eu nem nos meus piores dias, poderia suspeitar acontecer a alguém. Que teria feito aquela pobre rapariga...? Teria tentado comprar uma mini-saia à Mary Quant...? Teria cruzado o olhar com algum ocidental mais furtivo ou bonito que o seu coração o flamejasse?...Que teria feito a pobre?...
Não houve tempo para grandes explicações até pela razão de que eu não sabia árabe e ela não deveria saber inglês pelo que nada disse nesse sentido. Levantou-se arquejante ainda mas, pegando-me nas mãos sobre as suas em gesto de favor feito e apreciado, enalteceria algo que não discerni em palavra mas antes em compreensão gestual e de coração aberto. Tive uma visão estranha. O que vi, fez-me temer. era eu, não ela a ser apedrejada num tempo que não reconheci de imediato mas sabia que era eu que ali estava. sentia as pedras em mim sobre o meu corpo trespassado por estas e vozes à minha volta, evocando insultos e denunciando-me adúltera, incestuosa e sei lá que mais. Arrepiei-me toda. Que coisa, senti!

Ao invés de se quedar em lamentos, sorriu-me depois e disse qualquer coisa em que só distingui o nome de Alá e...nada mais. Sorri-lhe também. ainda antes de sair, diria algo parecido com: América!...e partiria, juntando-se à prole de mulheres suas familiares ao que reconheci pela agitação instantânea e refrego nesta de se ter desviado das demais, puxando para si e, enfiando dentro do portentoso automóvel com motorista. Era um Mercedes de alta cilindrada por onde três ou quatro mulheres atrás de si, entrariam cheias de sacos de compras e regateio árabe entre elas. Fiquei estupefacta pelo sucedido em que a minha amiga de nada se apercebeu, estando ainda perto da caixa de pagamento e eu, boquiaberta, vendo aquele espectáculo de passadeira de moda em burkas e espécie de elmos de pele sobre os seus olhos (numa realidade exterior que eu nunca tinha visto) petrificando-me o querer e o passo por me saber tão feliz em pessoa e, em liberdade.

Ainda hoje a sinto em mim, ouvindo-a: "Insha`Allah! Insh`Alla! seguido de algo mais...se era o nosso «oxalá...« (se Deus quiser...) eu não sei mas sinto que o seu Deus que é o meu Deus também porque Deus é único, seja em que religião ou ideologia for, ela terá sido bem sucedida. Senti-lhe muita força na crença e na veemência com que me ditou essas palavras em árabe. por um momento, um efémero momento fomos irmãs, amigas e almas gémeas...como, não sei. Penetrei-lhe no olhar e neste vi, o mundo, o meu mundo. Foi tudo muito estranho! Ou já fui moira encantada ou...desencantada ou nada disto faz sentido. Ou já vivi o martírio das almas humanas em figura de mulher mártir, sendo apedrejada e morta pelos seus, em tempos...não sei. Mas senti-o na pele. Para o bem e para o mal, eu devolvi-lhe a confiança e aquela espécie de fortaleza que pelos vistos, eu não teria lá muito em mim. Ou não sabia que tinha!

Voltámos a Lisboa com uma bagagem mais pesada de malas, roupas, oferendas e...uma lição de vida a mais. Pelo menos eu, que não mais me calei em fazer prevalecer os meus direitos de mulher e cidadã neste mundo ainda tão machista e patriarcal em que vivemos. Não que eu tivesse pretensões a ser uma amazona citadina ou feminista das que incendeiam soutiens, não senhor. Mas havia que lutar. pela infâmia da castração pública, da circuncisão em países de África, pela obediência forçada a maridos e companheiros déspotas, tiranos de outros tempos que nestes novos, ainda se fazem sentir. Parar com a violência doméstica em que mulheres do mundo inteiro são esquartejadas, vilipendiadas, estranguladas e mortas pelos seus parceiros de tecto, cama e tormentos. Seja no Médio Oriente, seja em Portugal - em que as estatísticas não mentem!...- seja no resto do mundo. Por Deus ou por Alá, que o nosso mundo seja melhor. E não é preciso que seja Natal ou em procissão a Meca que o recordemos, pois que todos os dias sejam de dar a volta a um sistema de gente bruta e má que mata o seu semelhante que meses ou anos atrás ainda dizia a meia voz: Como te amo!...Amo-te muito! para bem depressa esquecê-lo e ceifar essa ou essas vidas, gaseando, poluindo e matando esse tão grande amor, atrás vivido.
Pelo grande Deus do Universo em útero materno estrelar, galáctico e infinito, vamos tentar ser melhores pessoas, seres humanos dignos desse nome. Vamos tentar mudar, aqui e, em todo o lado. Foi esta a minha grande lição por uma simples viagem que não às estrelas mas ao grande circuito físico e mental do ser humano que somos, no melhor e, no pior. Vamos acreditar!

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