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sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A Arena

          "Deus, eleva a minha alma que, por meio de Ti, se fará luz. Sou tua serva, Senhor!..."

Pelusa - século I (48 a. C.) Hoje Salónica (Grécia)



Foram estas as minhas últimas palavras em oração não prescrita, não comutada da pena que me infligiam, mandando aos leões na enorme e ruidosa arena de Pelusa.
Estou a viver o derradeiro momento da minha tão parca vida em recursos e em proventos. Sou uma escrava de nome Yannia, perfazendo no corpo e na alma, uns magros dezoito anos de vida. Nasci na Lídia em Sárdis (Norte da Macedónia) e fui feita prisioneira, refém e nada, a mando e conta do exército poderoso e implacável de César. E neste caso, em legião da Lídia, por mão e espada de Pompeu, o carismático e portentoso general - e braço direito de César - liderando as tropas imensas, a cavalo e a pé. Devassaram a minha aldeia, violaram as mulheres, mataram os mais velhos, degolaram os de berço e, aprisionaram os que lhes interessaram, na força e na garra de sangue novo ou, os que de maior sapiência haveriam de lhes serem úteis. Eu não tinha préstimo para nada. Era uma simples aldeã de famílias muito pobres mas devia de ser muito bela, pois que uma multidão de soldados romanos me isolaram, querendo fazer mal. Tive sorte ou bafo de deuses que não conheço, pois que Pompeu se interpôs e me salvou das sevícias horrendas daqueles homens sem mulher há muito. Queria antes morrer mas nem isso me era possível, acaso este meu salvador e inimigo também, me não tivesse repescado das unhas e intentos desses pestilentos.

A minha história não é longa, desgraçadamente. Fui salva para ser morta depois. Não tenho quem me valha nesta aflição de origem perversa e maligna de Flávia Augusta que me reiterou sua rival e pretensa inimiga como se acaso eu lhe pudesse fazer frente a tão magnificente figura de estatuto e honras. Ela é familiar ainda de César que apesar de não saber das suas manobras de cobra assertiva que é, nos mandos e desmandos que faz assim que cheira algum opositor seu, envenenando tudo e todos à sua volta; literalmente.  Mal deu conta do meu amor, da minha intensa paixão por Julius Augustus e deste por mim, acredito, tudo ruiu sem compaixão, clemência ou recuo seu de me ver estendida e morta ante todos. Estou quase a cumprir os seus designios, uma vez que me encontro fechada nas catacumbas deste enorme e cruel coliseu de Pelusa, ouvindo já o estertor da minha morte em sons horrendos tanto de um público sedento de sangue, como das terríveis feras - imensas também, de enorme porte e força - que me esperam, esfaimados. Não tenho fuga possível e nem mesmo os olhares piedosos, urgentes que me suplicam perdão e cingem forças que não tenho em mim do meu amado Julius ( e que está do outro lado da cela imunda em frente à minha) me dá ânimo para resistir à extrema fraqueza em que me encontro. Lamento por ele que se veio meter na boca da Loba Romana por minha culpa, minha máxima culpa. Por não venerar os seus deuses de pedra, por não me sujeitar à sua promiscuidade de vivência maldita em que vertem vinho por si, nos corpos e nas almas, vomitam entranhas para degustar ainda mais numa gula imensa, insaciável e tortuosa de alimentos e sevícias nas orgias que quotidiana e libidinosamente fazem a cada dia que passa. São amorais, concupiscentes e traiçoeiros, até mesmo no seio das suas famílias se isso os travar de ascenderem pública e politicamente na perversão exacta das suas ambições e desejos. E isso, é do conhecimento geral. Todos o fazem, sentindo ser tão comum e natural como urinar ou defecar...assim mesmo. não têm pruridos de mandar matar alguém que apenas possa ter descurado o incenso nos quartos a defumar para tirar os cheiros, não ter despejado as vasilhas com os fluidos internos de noites mal passadas ou simplesmente, não se terem vergado à sua passagem em aceno e cumprimento de respeito, reverência e...temeridade.

Tenho medo, muito medo. Vou morrer por ter amado quem não devia ou...por ele ter olhado para mim e me ter preferido à sua concubina de leito, mesa e aprumação. Não lho roubei, pois sou uma simples escrava que só cometeu a mais elevada punição de, ter em si o coração que não é dela mas meu. E por esse facto, morrerá do meu lado, indecentemente. Não o merece mas comigo ficou na outorgada e última missão de se elevar comigo e, com a minha alma para os céus onde o meu Deus, o meu único Deus me espera, vela e encaminhará, por certo. E só por essa razão, é que eu me tento fazer calma e incólume a tudo o que possa vir do exterior de multidão insana, estulta e barulhenta. Se não contar com os animais que se digladiam uns contra os outros como se fossem eles mesmos, gladiadores de gentes e ovações em oferta dos que mais e melhor se desenvolvem na carnificina de arena demonstradas. Não tenho recurso nem apelo, a não ser à minha alma encomendada a Deus. Não, aos deuses, a esses nunca os adorarei, os venerarei ou por estes rezarei; nunca! Até ao meu suspiro final.

Aquela que me deu cama, mesa e guarida por serviços seus e que é mulher amancebada de Pompeu, hoje deve sofrer por mim, acredito. Não sabe ainda que me prenderam, apanhada em falta e em oração premente do que todos fazíamos, aquando as nossas raras folgas ou fugidas de momentos de pouco ócio que os senhores nos davam. Tenho pena por ela, lamentando com toda a minha alma, o mal que pude ter causado, assim que souber desta devassa de sangue e morte sem que me pudesse salvar também. Não há tempo para isso, pressinto-o. O meu «pai» salvador e de seu nome Pompeu também não o saberá de imediato pois está em mando e conquistas por terras da Tessália. Alexis, a sua gaulesa (da Gália) mais tarde  lho dirá em compleição e desnorte de mente sua por me ter perdido de seu seio. Acredito que ambos gostavam de mim, não sei se, como filha ou como apenas uma boa e simples escrava que possuíam...não sei, não quero ser injusta, não agora. Não o devo ser, nem sequer pensá-lo. Tenho de ir pura e casta como o sou de corpo e mente em todo o meu ser pois que homem nenhum tive em mim e hoje arrependo-me das investidas - frouxas e a medo, sim - do meu Julius Augustus que só me queria ver feliz. E eu não permiti. Fui tola, fui muito tola, agora sei. Deus me compensará por essa desdita de pureza infinita, sinto em mim.

Chegou a hora. A multidão ruge mais do que os animais que também já contemporizam no imediato o que vai suceder na arena. As minhas pernas tremem, tremem muito meu Santo Deus e eu, desajeitada de corpo e alma, lá vou sendo arrastada por entre outros, muitos que se amontoam e me calcam os pés em desvelos doentios, mórbidos de se verem ser conduzidos para uma morte que não escolheram e muito menos, desejaram. Vai acabar tudo dentro de alguns momentos, trágicos, dolorosos e infames, estou certa. Não se pode fugir, nem mesmo dos olhares cavernosos, ruminantes e odiosos de todo o público presente. O som dos pés a bater nas bancadas é tão assustador e corrosivo nos meus ouvidos e nas minhas entranhas que eu me sinto desfalecer já, ainda que o meu bom Julius me tenha conseguido segurar, acercando-se de mim e fazendo uma barreira não transponível para o final a que me destino; eu, e ele. Ele é um soldado romano, não lhe podiam ter feito isto, sinto...mas fizeram, para que ele fosse um exemplo de permeio e punção punitivas de não lhe repetirem na proeza de se envolverem em afectos e emoções com quem não devia, disseram-lhe em repúdio e não absolvição de seu acto impuro. Ele também tem medo, sinto-lho e pior para mim ainda, que tão culpada me vejo por o ter arrastado de igual modo em destino e em rara fortuna de se ver de meu lado em morte precipitada, precoce e sem honras nenhumas. Mas não se pode voltar atrás e acaso eu Yannia, voltasse...não o olharia, não o amaria...não o sentiria? Não sei. Soube o que era o amor e podendo ou não, correr o risco de roçar um certo egoísmo meu, eu não sei...ter conhecido o amor, o seu cheiro, a sua pele, o seu coração, o seu sentir em mim...Deus meu, perdoa-me por isso, mas é o que resta nesta imensa arena, de sangue, gritos e desmembramentos de pernas, braços e corpos deslaçados já de vida. Eu sou a seguir...valha-me meu Santo Deus, dai-me forças. Já nem consigo olhar. Deus!!!

O meu último pensamento foi para o Julius e para Deus. Ele, Julius num seu ultimo acto de caridade e amor supostamente, pondo-se na minha frente, foi rapidamente trucidado por um enorme animal tigrado de corporalidade igualmente forte e possante que o elevaria no ar, rasgando com os dentes afiados, trespassando quase de imediato. Ainda que tivesse toldado a minha vista para não me submeter àquele horror de morte iminente, foi mais forte do que eu e vi, meu Deus como vi. Ao meu lado estava o ancião e profeta Deodácio, seguidor do filósofo pré-socrático Demóstenes que, em gesto omnipresente e intemporal enunciaria a alta voz: Não se podem amar deuses de pedra, seus iníquos, seus devassos!!! Deus é só um e não é de pedra, mármore ou rocha mundana! Deus é Deus, todo poderoso!!! O que é de César, não o será jamais! O que é de César, só o pó dos caminhos e a água dos rios e dos mares...Alguém um dia virá que Esse sim, será a fonte eterna de todas as curas, de todos os males, até para a iníquidade humana!
Este pensador e mentor messiânico, morreria de seguida, picado pelas farpas afiladas e mortais dos soldados romanos que iam espicaçando os animais para que se investissem nas dezenas de infelizes que, como eu, se iam debatendo na fuga e na crença de uma salvação maior ou milagre de último momento haver. Mas tal não aconteceu. Nem podia. Deus sabia que, sendo nós reféns e pasto ou refeição naquela circular e sangrenta arena de gáudio para os romanos, mais tarde se faria justiça em nome dessa chacina, em nome de Si, para que o mundo soubesse e acreditasse numa outra verdade, que não a dos romanos infiéis e fatais de assassinatos capitosos e malditos. Era nisso que eu acreditava. E terá sido isso que me salvou, não da morte certa em corpo destroçado mas em alma purificada e, eterna. Aquela boca imensa da besta, a vir sobre mim...os seus dentes mais afiadas que as garras, supus, a caverna da sua boca do céu como anunciação de Inferno pungente em mim, vi-me então sem dor ou debelação (numa inactiva circunstância em que eu era mais espectadora do que ser a mortificar) a ser rasgada, a ser deslaçada de tudo. Da dor, dos sentidos e... da vida propriamente dita. Depois, o sossego, o silêncio. A luz, o caminho. E...mais nada.

Leveza, pureza e crença. Deus levou-me. A mim, ao Julius e a todos os que junto a mim estavam em suplício, temor e horror. Depois a paz, essa imensa e inesgotável paz interior e exterior a tudo o que se conhece...ou conhecia até aí. Maravilhoso. Mais uma vida em que me purifiquei e Deus me deu o beneplácito de me ir tornando um ser mais perfeito, mais belo, mais iluminado. E não estava só. Eram imensos...belos, lindos, muito lindos seres de luz e amor. Aprendi (mais uma vez) que se tem de ser feliz e infeliz, rico e pobre, mártir ou generoso na vida que habitamos em diversos ou diferentes corpos na roupagem de várias vidas. Não sei se por esta ou outras que vivi, que odeio arenas e mal me aproximo de redondos ou circulares espaços de volúpia, entretenimento ou lúdica condição de tortura e despojo de animais de sangue quente, o meu coração explode, a minha alma retesa-se quase numa emigração sua do que ainda não me foi redimido ou vaticinado na neutralidade de sentimentos em comunhão com esses animais violentados. Os touros de morte e os outros ( não sei o que é pior se os que morrem logo na arena, se os que ficam a sangrar em febres imensas até ao dia do abate...) são os mesmos que já nos foram carrasco mas simultâneamente, os que tal como nós seres humanos, se viram e vêem a ser maltratados e mortos na era contemporânea e que poucas ou nenhumas honras haverá nisso. Deus é testemunha!
Mudar hábitos, mudar acções lúdicas tão imbecis quanto execráveis nos lombos dos pobres animais que à semelhança dessa outra época romana, se sentiu na pele e na alma. É uma indústria e um comércio de muitos valores, de muito dinheiro mas, não o considerar e repensar, será um erro tão grande como o fazemos com as poluentes siderurgias e empresas de fluídos e resíduos tóxicos, mandados para os rios, para os mares ou para as crateras terrenas existentes por este mundo fora. Pensem nisso. A realidade tem de ser outra, a bem de todos. Hoje mártires, amanhã salvadores! Não queiram que sejam invertidas as situações e as acções que fizermos na Terra pois hoje lacaios, submissos e hienas mal-cheirosa e criminosas, amanhã em expiação de pecados...demónios em homicidas, violadores, pedófilos e todo o género de assassinos natos de berço e crença sem salvação possível. Pensem nisso! E pensem bem! Bem-Hajam!

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