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sábado, 15 de fevereiro de 2014

A Marca do Vampiro



Sou um espírito vagueante, eternizado na esfera de um Anjo caído, o meu Anjo, que me amaldiçoou os dias e, as noites vadias, perpetuando nas escadas da vida. Não escolhi, fui escolhida, numa cruz impiedosa e maldita que me faz ladear por entre os vivos...e eu, morta!

O Limbo - 1 de Novembro de 1975
Senti um gosto adocicado na boca: era sangue, o meu sangue. Não gostei da sensação e tentei aperceber-me da realidade. Não o consegui. Ouvi passos apressados, sirenes. sentia-me a deixar o meu corpo, sentia-me perdida. Apenas os sons ecoavam no meu cérebro em osmose de dilúvio tenebroso entre o que restava de mim e, o mundo terreno. Queria abrir os olhos e estes pesavam-me tal como a minha tumba, a minha sepulcral e gélida morada última e que, eu só deixava à noite para me presentear por entre os vivos. Que maldição a minha, que me deixei tomar em corpo e alma por ter amado e tudo de mim ter sido levado...

Hospital de Santo António - Porto
Já não sei onde estou. Apetece-me vomitar as entranhas e correr, correr muito. Já só lembro do chiar dos pneus e da minha enorme aflição de deslace da vida e, do cheiro a óleo queimado no ar. Penso que sofri um acidente de viação e fui trazida para esta tumular previdência de mortos-vivos a que dá o nome de hospital.
Não sinto nada: apenas ouço as enfermeiras em meu redor que me entrelaçam de fios e mais fios e que, agarrados a máquinas (muitas) vão transmitindo sinais e sons e eu...corpo inerte, disforme, vejo-me nua e somente envolta por um lençol que me não tapa a existência, mas apenas a alma que se vai esvaindo.
Ainda sinto o cheiro do alcatrão esparramado de sangue, muito sangue. Apresentava uma ferida profunda na cabeça que de imediato os paramédicos me estabilizaram em jorro hemorrágico insano. Diziam que eu estava inconsciente e que revelava cortes faciais o que me constrangeu pelo que sabia ter de «recompor» assim que dali me soltasse...para não mais voltar. Asseveravam estar em presença de um traumatismo craniano e que a minha frequência cardíaca oscilava entre 55, 56; tensão arterial 26 - 14 e respiração 12 e depois mais nada...apenas o silêncio. Agora, em sepulcro de maca hospitalar, os meus sinais vitais reduziriam drasticamente e eu entrei em assistolia - não sabia o que queria dizer mas reconheci ser grave pois a confusão que se gerou de seguida, reivindicou isso - dando-me uma injecção de epinefrina, restabelecendo-me o ritmo cardíaco. E eu, assistia a tudo da parte de fora vendo-me a ser manuseada e vilipendiada, supus, por seringas, fios, mãos e movimentos bruscos sobre o meu inerte corpo como se estivesse em rigor mortis. Mas não estava! Diziam que eu estava no nível 5 na Escala de Coma de Glasgow e, do que me lembro em réstea de esgoto de sarjeta que eu era - em que me aplicaram de novo por via endovenosa 500 cc de manitol - fui conduzida para os cuidados intensivos em que uma valsa de enfermeiras, médicos e demais pessoal auxiliar me rodeavam como se eu fosse um animal de laboratório sem vontades ou quereres como terá dito um dia a minha avó em 1875 quando me apaixonei...

1875 - O Ano da Paixão
Eu era (ainda sou...) uma menina-mulher de 15 anos. Possuo belas formas de cintura e cabelos ondulados negros que me dizem ter saído à minha bisavó em árvore genealógica um pouco louca por vias de um matrimónio de alçada britânica do pai desta (e meu tetravô) com a minha tetravó portuguesa e, nortenha pelas cinco quinas de Portugal! Tenho uns olhos amendoados e brilhantes de cor acinzentada que também lhe terá sido roubado pelo que me afiançam do seu porte majestático de rainha da Bretanha. E...o seu mau feitio, asseguram-me também. Sou rebelde, inteligente e pouco recomendável ante o que se conhece das meninas do meu tempo em bordados e cantorias francesas ao piano. Odeio!
Na minha pungente irreverência, leio às escondidas "O Crime do Padre Amaro" de Eça de Queirós em que uma paroquiana se envolve intimamente com o pároco do seu povoado e acaba mal - pelos vistos, pois ainda não cheguei ao fim mas já me constou - deste interlúdio pecaminoso entre um venerando acólito cristão e, uma sua ovelha tresmalhada. Como se houvessem ovelhas assim...e nós raparigas e mulheres tenhamos sempre a causídica da culpa e, da punição. Como um estigma fêmeo em continuada assumpção doentia do que nos fazem sentir em castração e limites ao longo dos tempos.
Ontem vi-o! Ele foge de mim. Ele foge de todos na aldeia. Dizem que não é bom da cabeça e que sendo órfão, isso ainda o transtornou mais. Mas é lindo! Tens uns olhos selvagens enormes e um cabelo de estopa negro que faz lembrar os ciganos das feiras que sempre por aqui passam em festividade anual em circo e fantasias suas de utensílios e roupas da venda. Mas ele é diferente. Possui um olhar de lince e uma passada de raposa fugidia sem que ninguém o detecte a não ser eu. Um dia entrou-me no quarto. E eu assustei-me. Não lhe reconhecia tamanha ousadia mas fiquei feliz por ver que lhe correspondia em afectos e sonhos...

O Amor Pleno
O Verão já vai no meio e eu sinto em libélula transformação como larva a sair do casulo na mulher que agora sou...com ele do meu lado. Chama-se Martim e tem músculos de homem do mar, ainda que por lá não tivesse assomado, disse-mo. E eu, Mariana, ouço-o nas noites perdidas e nos momentos a sós em que ele me vigia o sono e toma nos braços e faz sua, sem que ninguém o suspeite. E eu deixo-me amar, sentindo-lhe o cheiro a macho, a desejo e, a toda a essência corporal que ele extrapola em mim como único ser no mundo a ser amado. Diz-me que eu vou ser eterna para ele e eu estranho...fala-me de tal com aqueles olhos de lince e falcão em encontro de presa que eu lhe sou. E eu voo com ele. Dou-lhe a mão e perco-me nos seus sonhos e vejo-o numa dimensão que nunca pensei buscar algum dia.
As noites são imensas. Os dias, vazios. Ele não se assume de dia, pois ninguém o vê. Perguntei-lhe certa vez, qual a razão de tão nocturna actividade e ele respondeu-me com um sorriso seu de que não gostava do dia, do Sol e...das gentes em bulício de quotidiano agitado e rumoroso. Fiquei assustada mas depois compreendi do que à noite ele se soltaria em pujança sua sem afrontas nos demais que o impunham como indigente e alma penante de ninguém ter à sua beira. E o nosso amor continua...por entre os meus lençóis de linho e, o seu sentido irónico ao revelar-me que de si nunca sairei, nunca mais!

A Morte
E esse dia veio. Ainda que por meio de uma horrenda noite em que o meu pai, homem de poucas palavras e muitos actos - maus - me arremessou contra a parede por ter visto ainda em chama última, o meu Martim ter saído à pressa do meu quarto em noite sem Lua.Trancou-me depois em fechadura de porta e janela franqueada sob madeiras grossas e maciças de nada se ver, de nada transpirar lá para fora ou de fora para dentro. Fiquei escrava, fiquei prisioneira. E amaldiçoei pai e toda a família que se tal houvesse prevenido, e me teria ido embora fugindo com o meu amado. Mas era tarde demais. Muito tarde...
O que soube depois, agoniou-me. Pior que me esventrar o corpo, seria o terem-me condenado a alma. Perseguiram-no. maltrataram-no e...mataram-no. E eu louca, dizendo que se mo mataram, me matassem também a mim, fui dada como insana e posta num manicómio da cidade. E fiquei louca de facto. Até ao dia em que ele me veio buscar e me tirou daquele suplício de loucura em que só ouvia gemidos e gritos das outras internas aí. E que sofreriam como eu, supus. Foi a noite mais linda da minha vida!
Fugimos para as Beiras. Fugimos para as serras de neve e cumes altos em frios imensos mas de quietude e morna ambiência em que ele me esquentava o corpo e, a alma. Não mais vi os meus. Nem o queria...talvez um dia me perdoassem, não o sabia. Mas desistir do meu homem-noite, isso nunca!
Até que me descobriram e de novo me levaram. E, a ele. Se tinha pensado terem-me mentido da outra vez na sua morte havida - e feita por mãos de meu pai e outros - agora não havia mais dúvidas. Fizeram-me ver o que ele era: um monstro! Deceparam-lhe a cabeça do corpo, após lhe terem espetado um prego nesta. Colocaram-lhe uma estaca no coração, envolto em rezas de expurgo e maldição, expiação e depois purificação, disseram-me. Queria ter morrido logo ali mas nem isso me deixaram, obrigando a ver o que me revelavam este ter sido em vida sob noites maléficas de horrores e malfazejos seus em mortes havidas por toda o campanário, aldeias e vilas vizinhas. Que matava as galinhas, os porcos, os bezerros com as suas dentadas malditas e malignas, para todo o sempre. E que ficava de vigília das moças solteiras, das donzelas e virgens anunciadas para o seu gáudio de homem-lobo, homem-diabo que matava tudo ao seu redor.
Despedi-me dele com um beijo que ninguém me conseguiu segurar. Ainda com a cabeça neste. Fiz vomitar muitos dos presentes com a minha ousadia mas fi-lo ainda assim. Meu pai renegou-me e minha mãe também. Os populares voltaram-me as costas e eu aquiesci, ficando só e desamparada. Agora...era eu a indigente, a malfeitora, a perdida. E para sempre o fiquei...nas noites havidas em que o buscava e não encontrava. Mas continuava a procurar...

1975 - De novo no Hospital
Passou um século. E eu sobrevivi. Não morria. Vi passar familiares, entes queridos e gentes que me tinham feito feliz nessa outra vida e todos morreram. Eu não compreendia. Não, logo de início...para depois ter a percepção exacta do que me tinha sucedido. Eu era eterna! Para pecados meus e...de todos os que me eram afectos e detinham as minhas simpatias (poucos). Nunca me senti tão só! Tinha poderes imensos mas não era feliz. Nunca mais fui feliz. Vivia e ainda vivo de noite. Olho as estrelas e escondo-me destas. E do Sol, e das nuvens e...das brisas do vento e de tudo o que um dia almejei poder viver em paz. Mas tenho de continuar nesta busca, nesta procura do meu amor do passado que para trás me deixou em lástima e consideração injusta de, de mim o terem usurpado. Vivo no meu castelo assombrado que só eu sei o caminho, que só eu sei por onde ir e caminhar. Tenho riquezas imensas mas não faço uso delas. Vou esperando que um dia ele me encontre ou eu, saindo da alquimia sepulcral em que estará em morte expectante mas não eterna, como eterno é este meu enorme sofrimento da sua ausência. E espero...
São três horas da manhã. Acordo. Abro os olhos e vejo-me numa cama de hospital. Que se terá passado...? Arranco os fios, arranco tudo de mim. Nada me prende ali. Tenho de sair, tenho de fugir daqui...penso. E fujo. Ouço ainda os passos apressados das enfermeiras pelos sons e avisos monitorizados em mim - até há pouco - e que estas sabem algo se ter passado de errado em consonância com o registado até aí. E eu voo. Abrindo as janelas, abrindo corredores com uma força que não é minha, solto-me e espalho a confusão em ecos de multidão e sentidos que mais ninguém tem. Estou fora do hospital e sou de novo livre! Livre de tudo. Até de mim! Volto para o meu casebre, volto para a minha infâmia de vida, voltando para o meu desterro, o meu degredo mas, sabendo, que um dia ele vai voltar! Tenho a certeza!
Meu amor, meu Martim adorado nesta e noutras vidas que, mesmo sem seres abençoado meu vampiro maior, me serás consagrado na vida que após nossas almas se unificarem, eternas se elevarão.
Meu amor...estou à tua espera. Vem para mim. Vem depressa. O meu sangue, é o teu sangue, a minha alma é a tua alma...eu sou tua e tu...serás sempre meu também! Agora vem...

2015 - Algures no Mundo
Ele veio. E está mais belo do que nunca. Não semeia ventos nem tempestades e não abate gado nem rasteira cidades com a sua sucção voraz por sangue e endémicas avenças do que o reconhece como vampiro destes novos tempos. E eu...bem, eu continuo apaixonada. E eterna! Ambos iremos ser a pedra tumular do que na terra faremos de maior e de melhor: espalhar a paixão. Com sangue ou sem sangue derramar, iremos para sempre eternizar este nosso amor consanguíneo de alma e crença para todo o sempre. Para todo o sempre...

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