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domingo, 20 de julho de 2014

A Idade da Inocência


20 de Julho de !969 Chega À Lua!                      Astronauta Norte-Americano na Lua

Perante todas as condições adversas e, as leis da gravidade impostas num espaço desconhecido, que probabilidades teria o Homem de se aventurar na esfera estelar, ainda que sob supervisão terrestre e...porventura cósmica, nesse todo de descobrimento e, posterior colonização?

20 de Julho de 1969
Estava um dia quente, muito quente. A minha avó (que Deus tem!) fazia-me umas rabanadas fritas de pão de centeio e mel, com ovos exponencialmente amarelos e, acabados de tirar da capoeira. Eu tinha pouco anos de idade e, lembro-me, que tinha tranças pretas e era míope! É do que me lembro. E amava a minha avó! Muito! E como ela era linda...já a conheci velha, muito velha, debaixo de uns negros panos de viúva precoce que fora  mas eu, inversamente aos demais, lhe enaltecia os louvores e as canduras de tão bem me querer!
Ela era como uma segunda mãe para mim, a única que eu lembrava de quando os meus pais se demitiam de mim e me deixavam prostrada com uma mala de cartão e, todo o resto à consignação da minha santa avó velha, muito velha, que já nem lembro das suas rugas, das suas muitas rugas e tez queimada pelo Sol, aquando se deixava eternizar nas fazendas dos vizinhos e se perdia em almoçaradas de pães de trigo (enormes!) e azeitonas. Ah, essas mesmas azeitonas que fôra o início do seu louco e devassado namoro com o meu avô - de bigodinho ralo e uma feição matreira de homem da vida - e, ela, me contou que, debaixo de uma longa figueira, se haviam amado perdidamente e eu...sem saber ainda muito bem o que isso era, dizia-lhe que sim, na afirmação assente do que ainda não sonhara existir ou haver debaixo de lençóis!
A aldeia estava pejada de vida. E eu adorava isso! Era como uma segunda casa para mim, em busca de uma ruralidade que me invadia o espaço como percevejo em cama de pobre. E eu delirava com toda essa azáfama de jorna e solstício de veraneio que compunham a minha magra existência de poucos anos de idade.
A Amoreira de Óbidos era o mais alto expoente de toda a minha razão de ser! Eu amava aquele aldeia, ah...como eu a amava, e que dor de cada vez que tinha de partir...sem mais ver o milho-rei a abrir-se em flor nos gentios e, nas moçoilas da terra em olhar voluptuoso e de certa forma concupiscente, de quando um rapazola lhes atirava um olhar mais soalheiro. E tudo era tão novo para mim...e tão farto, e tão feliz santo Deus! O João Artur que, vinha da faina das fazendas com a burra teimosa que sempre parava na bica da praça para descansar das suas canseiras, em cestas carregadas de azevinho e pinhal obreiro e, as outras burras - animais de igual tarefa e cumprimento - em fim do dia deslaçadas da jornada árdua e castigadora de seus proprietários e ordenandos. Umas vinham latejadas de flores (os alforjes) - em cestas de vime pejadas - outras de bugalhos do campo e demais vegetação para o Inverno que se avizinhava, ainda que fosse só daí a uns meses - de faina extenuada de dias e noites de acumulação domesticada. Era tão lindo de se ver! E...sentir! E eu cheirava esse ar do campo...num misto de papoilas, malmequeres e...azedas...aquelas tão lindas e pequenas flores amarelas que emergem dos campos como vida feita anúncio natural, nas ervas daninhas e, nos campos de urtigas ou silvas, mas que eu embelezava à medida que nestas passava em alegres e saltitantes júbilos de criança feliz, criança despreocupada com a vida!
Depois...havia o João das flores e tudo naquela aldeia soava a «Joões?» Disto ou daquilo...a seres que, sendo João ou de outro nome qualquer, Jacintos, Joaquims,Alcinos, Adozindas, Almerindas, Felicidades e outros que tais...tinham sempre nomes estranhos, estranhos demais para quem vinha da cidade...ainda que esta, ficasse a apenas oitenta ou noventa quilómetros de distância da grande cidade de Lisboa!

O Homem na Lua
Como disse, estava calor, muito calor. E tudo suava ou brotava das amendoeiras, das laranjeiras e dos limoeiros com a mesma fragrância dos grandes acontecimentos: a placitude do som das cigarras e dos grilos que teimavam em não se fazer silenciar nas cálidas tardes de ócio e, bonomia, entre uma aldeia deserta de gente em idade activa e, um Sol capitoso que insistia em permanecer fervente e pouco piedoso de quem se aventurasse sobre este em campinas abertas. A minha avó não era excepção. E eu, também não.
Observava-a a bordar ou, a cerzir um pano que já tivera melhores dias, sob um ovo de madeira que nunca compreendi muito bem a sua utilidade. Silenciava perguntas e desmandos...sem a querer aborrecer pelos muitos e obscuros momentos de compenetração havida, recortados unicamente pela velha e roufenha telefonia que a mãe um dia lhe dera por ter comprado uma outra muito mais moderna.
O João das Flores chamou-a de rompante e pensámos que algo de grave tivesse sucedido, mas não, apenas queria mostrar-lhe a sua mais proveitosa e, julgo promissora colheita havida, em gipsófilas amarelas, rosas e alaranjadas num cruzamento algo inédito e mesmo incestuoso entre umas e outras que eram uma autêntica maravilha! Tirando isto, nada de anormal, levando a que todo esse ócio rural me aborrecesse e me levasse a dormitar no meu subsequente quarto, logo seguido ao da minha avó que era enorme e dava para o quintal.
Nesse quarto havia um retrato e este, para sempre, determinou a minha pertinente vida em submissão e total veneração numa  edénica  simulação das portas de entrada de um qualquer paraíso ou, de uma espécie de sublimação sobre uma figura de cartaz de actriz de cinema - ou simples publicista a uma mui conhecida marca de tabaco. Esta imagem em retrato de cartão e sobreposta sob um velho roupeiro carcomido pelas traças e pelas agruras da vida, era o que de melhor eu sublevava de uma ascensão meteorítica ao supremo das luzes da ribalta, invocando-me nos palcos da vida em luminosidade espectral e, espectacular, em que eu era simultaneamente a diva, a actriz, a deusa magnânime de todas as coisas vivas e não vivas do meu território: o meu quarto! Ficava horas pendurada a ver a louraça a olhar para mim numa simbologia de mulher fatal e, ídolo endeusado, que tinha vindo direitinha da América do Norte por vias de um tio embarcadiço que não dava ares da sua graça, havia já muitos anos, ficando a avó pendurada de notícias suas e, sobre o carteiro da aldeia que já quase fugia de si por tantas perguntas sem resposta havida.


A Grande Notícia! A Grande Novidade: "Ó Ju, o homem foi à Lua, Porra!!!
Bateram à porta. Também não era preciso muito para que esta rangesse de soslaio e frágil quebranto seu em madeira velha e, esbatida pelo tempo, em que a a cor original se não adivinhava nos seu todo. O vermelho com que fora pintada - sabes-se lá porquê - estava agora descorada e lascada deixando entrar por farpas e lascas apresentadas, um vento frio que nos enredava nas pernas e só acabava na solicitude de umas quantas chávenas de café de cevada ou chá deslavado que a minha avó me dava.
Mas, naquela tarde tudo mudou. A aldeia estava em polvorosa e desde o Eduardo da taverna à Felicidade que vinha afogueada da praça com a grande novidade de que o homem tinha pisado a Lua - sem ela mesmo saber a sequência, finalidade ou sequer importância desse mesmo acto divino por parte da Humanidade - e assim, o rebateu tal como sinos em rebate de igreja ou debandada de crentes e aí vai disto: «Ó homem que é verdade sim senhor, disseram-me ali no Café Central da Dona Antónia e do senhor Joaquim - a acordeonista-mor e seu reverendíssimo esposo - que a coisa se deu, e até estão a dar na televisão que todos já estão a ver...até a Alice coxa que deixou o leito para ir ver e...a Generosa que deixou uma carga de roupa no rio e veio a correr, e...o Lindo que não desamarrou a mula e ali está também de boca e queixos abertos homessa!!! - E vai daí, o Eduardo- homem espadaúdo e pouco dado a grandes festejos, lá se assumiu de razões e lá alvitrou em voz de Adamastor para a minha avó: Ó Sôra Estina então não querem lá ver que até é capaz de ser me`mo verdade??? Bora lá ver isso, carago!!! Se o homem tá na Lua eu cá n`a quero perder isso por nada deste mundo! Bora...! Assim como assim até já fechei a taverna, quem quiser emborcar uns copos terá de esperar que eu volte e venha na missão de Deus ou dos homens, para ver também se é me`mo verdade esta coisa do homem pisar a Lua!?...Querem lá ver que é me`mo verdade??? Venha Dona Estina...até porque...já todo o povoado tá lá em cima no café...só faltamos nós!"
E a minha avó foi. E eu...também! Não percebi nada! Também não era de estranhar devido à pouca idade apresentada por mim que, me entretive a chupar uns caramelos de açúcar que davam para matar um elefante de cárie mas que, ali, me deram a sensação plena de segurança e tranquilidade infantil que toda a criança merece. E a  avó pasma! Pasma de todo! Até teve de se segurar no banco de esguelha do Café Central que nunca tanta gente tinha visto em si, a não ser aquando o último episódio do terrível «Inspector Gerard» que perseguia selvática e infrutuosamente, um pretenso «Fugitivo» de uma série desse mesmo nome em sucesso mundial de audiências por todo o mundo!
- A Nave Norte-Americana Apollo 11, com o peso de 3100 foi lançada a 16 de Julho! Dia 19 de Julho foi  tornada satélite da Lua! No dia 20 de Julho presente - e por emissão da entidade espacial da NASA - sabe-se que Neil Amstrong é o primeiro homem a pisar solo lunar!
Michael Collins fica aos comandos da nave, Neil Amstrong e Edwin Aldrin, a bordo do módulo Eagle, pousam na Lua!                     - Serviço noticioso da RTP - Notícias vindas da Estação Espacial da América para a Radiotelevisão Portuguesa em honra, bandeira e nação!
 E foi assim que toda aldeia ficou a saber do evento extraordinário! E bebeu-se uns copos de vinho tinto para comemorar e, «eduardinhos» (copos de vidro grosso muito pequenos) de gengibre, e aguardente para os mais afoitos que isso de vinho tinto caseiro é para meninas! - asseveraram em voz rouca e matizada, pela aguardente goelas abaixo deitada durante longas décadas de ócio e comprazia!
Voltei para o meu quarto onde me esperava a loura lânguida de lábios vermelhos pintados e só mais tarde pude aferir ser semelhante à infeliz diva, Marilyn Monroe. Queria ser como ela! Eu tinha o direito de ser como ela e não...ter umas pernas esguias e sem graça, uma barriga saliente como o sapo que a minha avó materna exibia à entrada de um dos seus quartos e, uma visão que, à lupa, me deixava tão constrangida como a mais cega toupeira em arrebates escolares de «caixa de óculos» que quase sempre me punham a chorar no declínio tenebroso e empobrecido por mim, de me ver e sentir tão feia como um Esopo dos contos infantis. E penava por isso. Só me restava então esperar...esperar que me levassem também a mim para a Lua para poder ser livre e feliz...e viver sem as maldades mundanas de rapazes tão infelizes quanto eu, que tinham de contrapor contra mim os seus próprios defeitos e...frustrações de pais que não lhes ligavam nenhuma!

Dia 21 de Julho de 1969
O Café Central estava vazio. Pedi um caramelo. Outro caramelo. A televisão já mais baixa em som, ruído ou entusiasmo exagerado da véspera, roncava um fado em nacional patriotismo de música ligeira portuguesa por voz da eterna Amália Rodrigues - venerável ícone de Portugal em canção e fado chorado de um só lamento que levava as mulheres à loucura das muitas lágrimas havidas e, das muitas agruras de uma guerra colonial que lhes levava e decepava os filhos no viço da vida. E eu...ouvia, por entre adocicadas chupadelas surdas que me faziam ainda ouvir em notícia precisa de: "Às 3 horas e 56 minutos deste dia 21 de Julho do belo ano de 1969, Neil Amstrong é, efectivamente, o primeiro homem a pisar a Lua! Após 22 horas de permanência na Lua (duas fora do módulo), os astronautas iniciam assim - e deste modo vitorioso! (incidiam em garbo e elevação noticiosa...) o regresso à Terra!
Nada de anormal. Até aqui. As burras continuaram a sujar os pavimentos da praça em bostas suas nojentas e mal-cheirosas, os anciãos continuavam a entreter-se na jogatina ou...a dizer mal da vida alheia e, a minha santa e querida avó, a fazer o seu quotidiano de cerzir meias, fazer-me a ceia ou tão e somente perder-se também ela, na farta cavaqueira entre as vizinhas sobre a «ousadia» do Faustino da Alzira se ter perdido de amores pela forasteira Hemengarda que veio das Beiras para ajudar a cuidar de um familiar doente e se deu de ânimos e devaneios pelo Faustino que lhe andou a fazer a corte - e com sucesso - levando umas nabiças para a sopa de coentrada da noite. Pior foi, que a boa da Alzira soube e, aí vai disto...escarranchou-se em cima da Hemengarda - a cabra, que lhe deitou mão ao homem comprometido e de família feita - dando-lhe uma sova que só visto! A populaça acorreu toda, mais em arreganho de festividade improvisada do que propriamente para apartar tamanha rebeldia de guedelhas ao ar e unhas afiadas, rindo-se a bom rir e, esquecendo-se literalmente do passo grande - passo enorme - que a Humanidade tinha acabado de dar na Lua em face à sua iliteracia, à sua ignorância, à sua modesta e ínfima vida rural que se preocupava mais em saber se o porco cobridor do Joaquim dava uso ao seu bom nome nas suas porcas do que, eventualmente, o homem ter andado a «passear na Lua»!

E foi assim o meu santo dia 20 de Julho para 21 que, sendo eu aniversariante nesta data, nem a bolo comemorativo tive direito, a não ser - e para grande prazer meu - uns «peixinhos da horta» em «pataniscas» (fritos à base de legumes) exímias, de sabor único e, feitas pela minha santa avó que para sempre recordarei como a mais eclesiástica anciã da aldeia da Amoreira - mas não na sua total dimensão, pois não frequentava a igreja e cuspia a quem aí se aventurava, por referir que beatas falsas havia-as muitas por ali. Mas tinha a sua fé. E rezava...acho que rezava, aquando o meu pai lhe arremetia em maiores esforços de, de mim cuidar ou sobre outro qualquer infortúnio citadino que lá longe ( a escassos quilómetros) se instasse.
Vieram chamar-me porque os meus pais tinham acabado de chegar para me levar com eles. Fiquei feliz. Até parecia que se tinham esquecido de mim...ainda ouvindo a senhora da televisão em ecrã a preto e branco enunciar: " Sua Excelência o venerável e mui respeitado bispo-máximo da Igreja Católica, o reverendíssimo Papa Paulo VI vai deslocar-se ao Uganda de 31 de Julho a 2 de Agosto em...(...)
O resto já não ouvi. Corri pela estrada fora, pela praça fora, ainda com os resquícios das notícias que me atordoaram a inocente vivência infantil em suada de liberdade e, muito amor pelos meus pais que, finalmente, me vinham buscar àquele fim de mundo, àquele mundo que, adorando eu tanto, me era também igualmente estranho pelas reminiscentes origens de me sentir aburguesada em seio urbano e, com os meus pais e restantes irmãos. Mas deixava a aldeia com o mesmo sabor com que tinha aí vivido em estadia estival de rios cheios de girinos e, levadas de água fresca corrente, onde eu colocava os pés e me sentia mais mágica e poderosa como se estivesse eu na...Lua, aquela mesma Lua que os astronautas americanos pisaram e...no belo dia, 20 de Julho de 1969! Verdade ou mentira...quem o saberá? Para mim foi verdade, tão verdade como se tivesse mesmo estado lá!!! E ainda hoje o recordo com saudade e...amor, muito amor de, na Terra ou na Lua, eu ter feito o meu mundo...e, à minha medida! E foi tão bom!!!

20 de Julho de 2014 - Após 45 anos passados  sobre este tão heróico evento espacial, ainda sinto a nostalgia das amoreiras carregadas de amoras e que, eu, em tempos que jamais esquecerei, esfarrapando-me toda - por entre silvas e espinhos - me sentia a mais poderosa princesa de joelhos ensanguentados e boca alarve, do suco dessas tão doces e ácidas amoras num misto supremo de sabor tão intrigante quanto confuso num seu potencial anti-oxidante - sabe-se hoje. Eu era feliz...como qualquer outra criança! E fui à Lua! Mesmo passados 45 anos sobre essa tão estranha epopeia lunar, ainda hoje recolho em mim a certeza de também lá ter estado e, certamente, ter visitado as suas crateras, as suas estruturas, o seu rosto, em solo lunar imaginário mas igualmente belo, volátil e mágico - no que só uma criança sabe assim sonhar! E...poder um dia dizer aos meus netos...meninos, a avó foi à Lua mas voltou...só para desta vos falar!!! E como é linda...essa Lua! Tão linda que jamais caberá no meu peito tanto brilho e tanta luz, que ainda hoje me ilumina...só para vos contar dessa viagem na idade da inocência, na vossa idade, em luz, cor e...amor, muito amor no tempo das amoras, no tempo sem idade de todas as inocências! Como é bela a Lua!...

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