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domingo, 10 de agosto de 2014

A Outra Vida


Moinho em São Martinho do Porto - Litoral-Oeste                                                      Portugal

Onde estão os nossos campos por onde semeámos o nosso amor, como puro trigo sem joio de permeio? Onde estão as fartas promessas de me ires fazer feliz para todo o sempre? Onde pára agora esse teu sorriso brando que me atingia como flecha de Cupido, elevando-me na alma a certeza de que serias meu para toda uma vida - a dois? Onde está agora o horizonte dos teus olhos que fugiram dos meus em campos de papoilas, em campos de girassóis, em campos de férteis esperanças no que só os moinhos de vento nos testemunhavam esse amor? E, tal como Cervantes...um dia, onde estão esses cavaleiros armados de lanças e posturas guerreiras, defrontando este intrépido inimigo de um tempo que se foi, que se escoou nesse mesmo horizonte de teus olhos e teus muitos intentos de me ter em ti, de me perpetuar em ti, de me eternizar...em ti? Que fantasmas eram esses do teu presente que me degolou um futuro a cumprir, sob ventos e moinhos em que um dia fomos - tu e eu - o dúbio leito sob ervas daninhas e Céu aberto, num amparo divino de deuses ou...de uma esfera estelar que nos disse a si pertencermos? Porque não ouviste os uivos do vento e me não guardaste em ti? Por que me deixaste ir...? Porque...me deixaste morrer em ti?...

O Namoro
Naquele tempo, das azedas e dos jarros que floresciam numa selvajaria ímpar por entre ruelas e caminhos transviados de pedrinhas e poeira, rolos de fios de cactos e demais vegetação ruim - se é que se pode chamar assim - à brava e agreste fauna de um litoral oeste - sobranceiro ao mar - tudo emergia em fertilidade assente, composta por uma indómita vontade de multiplicação e, reflorestação.
Tudo cheirava a mar. Tudo! Até os casebres húmidos e perdidos nas alcofas das pradarias imberbes que inspiravam maresia por entre paredes e telhados rotos de tijolos à vista mas, que nos pareciam palácios, aquando nestes penetrávamos com a a mesma igual ansiedade com que nos beijávamos.
Tu vieste com a quietude da noite. E daqueles momentos inseparáveis de uma mística tão própria de si, tão existencial ou enigmática quanto o poderão ser, os muitos fantasmas que nos percorriam o ser, nas sombras que não ficavam em nós e, nos espaços que não deixávamos a sós, de quando - eu e tu - nos amávamos nas eiras e nas beiras desses campos, dessas colinas altas em que se intuía um mar que se não via mas, se cheirava, induzindo-nos numa anestesia corporal em que só eu e tu entrávamos.
Dizias-me querer-me para sempre. Dizias-me que eu era tua e sempre o souberas disso. Que eu era aquela por quem esperaras uma vida toda e, por um só segundo, te havias destrambelhado todo em espécie de vazamento de alma, como se esta se te tivesse escarrapachado, ao teres posto a tua vista em mim. E eu ri-me disso. Imaginava-te todo estatelado em corpo e alma sobre a paixão avassaladora que dizias sentir por mim. E que essa paixão...era eterna. Como eternos são os sonhos...sempre! Ou nem sempre. Se forem sonhos de espuma, sonhos de farripas de nuvens, sonhos de névoas desamparadas no tempo e no espaço de quem os vê, de quem os sente. Eu era esse teu sonho...em espuma, em nuvem e, em névoa nunca emparedada, nunca circunscrita à tua vontade, ao teu querer, à tua intensa batalha por este amor.
Não foste um cavaleiro andante de lança em punho e plúmbico escudo que me protegesse desse tempo que não fica, desse tempo que se esvai sem deixar qualquer evidência ou vestígio de ter existido...um dia.
Amaste-me sobre os «chorões» que nós assim designávamos em vulgaridade de nome e entoação, daquela linda flor amarela sobre um verde estonteante que limitava a praia, a nossa praia. Banhávamo-nos nus e gostávamos disso. Éramos libertos de tudo: convenções, preconceitos ou qualquer outra punição que sobre nós fizessem. A praia era deserta, como desertos eram os teus sentimentos por mim. Falseaste-os, denegriste-os, amaldiçoaste-os! Para sempre! Eu...que te dei o meu corpo e a minha alma, aferindo acintosamente que iríamos ser felizes, que iríamos ter uma equipa de futebol em rabanada de filhos, que íamos fazer tudo juntos e...nada ficou. Só o amor de Verão e...aquele moinho de estopa e madeiras velhas, de desejo e...sublimação! O vento uivava e tu aconchegavas-me de encontro a ti. O teu cheiro a mar e guerra, suor e masculinidade prementes, fazendo-me gemer baixinho de tanto te querer, de tanto te amar e tu...fugindo de mim - ainda em mim - e eu, sem o saber! As vagas de teu corpo sobre o meu, como barco a remos em mar alto - sem saber para onde ir, para onde atracar - e eu, deixava-te ir, sem a mais pequena ideia de que esse rumar não seria mais de atracar mas...de partir, de não mais voltar.
E então, apertava-te contra mim e pedia-te tudo. E tu davas-me tudo. Deste-me tudo...menos o que não podias dar: a certeza de ficares comigo. Foste uma fase da Lua, um Sol que parte ou uma simples estrela do Céu que se desintegra, que colapsa ao menor ímpeto, ao menor esforço de um sentimento havido. Foste essa estrela! E eu...fui a névoa...só a névoa de uma outra vida que não fazia parte da tua. E não o sabia!

A Memória
Passaram trinta anos. Não te esqueci. Passou uma vida que nem sei se a vivi. Foste o meu caso perdido, o meu maior amor que jamais esquecerei mas...que jaz ainda em mim como doença crónica ou patologia permanente que me não deixa fazer desaparecer a tua imagem, o teu sorriso, a lembrança de ti.
Foram moinhos de vento em que nem Sancho Pança ou seu amo de loucura assente, os poderia reverter de um tempo que passou e, como num fluxo quântico ou de mestria intemporal - não ficaram, não colidiram com a minha vida mas criaram mácula, criaram pandemia visceral no meu agora sistema imunitário completamente indefeso, sobre a recordação que detenho de ti. Não sei o que fazes, não sei o que sentes...não sei sequer se ainda te lembras de mim. Talvez não. Talvez nem sequer te recordes do meu nome, dos meus olhos ou...da minha imagem de menina ainda sobre o teu tronco desnudo, sobre o teu peito farto, sobre...a tua vida de então. A amaragem de nossos corpos eram uma condição a dois, que se não extinguia assim. Lembrá-lo-às? Haverá em ti ainda, aquela mesma reiteração obstinada e em ti imposta de te fazeres homem, de te fazeres adulto, numa condição que na época me dizias ser difícil? Ser obstrutiva e análoga a uma tua maior independência paterna? Tê-lo-às conseguido??? Tê-lo-às vencido por meios de uma mais insistente vontade de te assumires na plenitude dos teus actos?...Como gostaria de o saber.
Passou tanto tempo...nem sei se já te conheceria. Não sei nada de ti. És como um barco que foi à deriva e se perdeu no oceano e, de mim, do meu cais de outrora. Não sei se um dia me lembrarás...se algum dia te recordarás daqueles momentos a dois de corpos nus em êxtase endemoninhado de desejo e continuidade que ambos éramos e, sentíamos. Penetraste-me na alma. Mais, do que no corpo de então. Induziste-me a ser tua, a indiciar um julgamento de pecado imenso pela vida fora...e, numa outra vida. Não pouso mais os meus longos cabelos sobre o teu peito esventrado para mim - no meu dilacerado - que o tempo não apagou mas, para sempre me ficou em tua memória...em tua imagem...em teu nome!
Voltei lá. Voltei ao nosso moinho de então. Está reerguido de novo. Foi reconstruído, foi pintado...foi enfim, embelezado por outrém. Tantas noites sobre si, tantas noites que o vimos como gigante domesticado que não Adamastor...mas antes o nosso fiel seguidor e cúmplice de nossos gemidos, de nossos sentimentos havidos. Não parece o mesmo. Está diferente. Está outro. A janela que se abria de cada vez que o vento nesta entrava, está agora encerrada, abrilhantada por umas portadas verdes. E o leme do vento está desembainhada, tal como marinheiros ao vento, marinheiros ao leme de seu navio, enfunados e soltos em brancas e alvas correntes de uma nova actividade ímpar. Parece tudo postiço. Chorei. Perdi-te o rasto. perdi-te em tudo...até na doce ilusão de te voltar a ver, de te voltar a ter nos meus braços!
 Amei-te tanto! E tanto...que ainda hoje me dói só de pensar nesse amor de antigamente! Nada que a memória apague, nem nada que esse namoro de outrora de mim afaste...pois que tudo voltaria a requerer, a sorver, a amar...de novo! Não viverei mais trinta anos...provavelmente. E tu...também não. Mas teremos sempre presente em magia e submissão, aqueles doces e etéreos momentos que nos fizeram ser um só em universalidade e junção de um só sentimento, de uma só condição! Penso que ainda te amo...não sei. Talvez não. Se acaso te voltasse a ver...apenas te perguntaria se ainda sentirias o cheiro do mar, o cheiro da terra molhada invadindo os nossos corpos amados...e se ainda te lembrarias desse nosso moinho de então? E tu, que dirias...? Que sentirias perante essa tão densa questão de trinta anos confinada em arca sagrada, em receptáculo reservada de nosso íntimo e, união? Lembrar-te-às dessa nossa outra vida - tu e eu - e, um certo moinho de vento que nos abraçava, sussurrava e cantava para nós em melíflua toada de uivos e lamentos seus? Mas nos mitigava a dor da separação e do frio que apertava, aquando nossos corpos se deslaçavam um do outro? Lembrar-te-às...? Olha que ele, o moinho...apesar de viver agora uma outra vida...penso que nos não esqueceu...pois ainda me observa com esse mesmo olhar complacente e belo de outrora...ouvi-lhe dizer. E ele não mente! Está novo, está belo e...rejuvenescido...quem sabe se, para um outro grande amor neste e em si, viver...não sei. Mas sei que ele sabe...que ambos jamais o esqueceremos em batimentos de alma, sons que o vento adormece e, em corações que a vida não esmorece! A outra vida passada era bem mais feliz...mas será numa outra ainda...que te voltarei a ter. E o moinho sabe disso!

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