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domingo, 21 de setembro de 2014

A Refugiada


Criança Síria - Campo de Refugiados Sírios, no Líbano

Onde será que acaba a mortandade e começa a felicidade...a minha e, a de muitos outros que comigo sofrem, desesperam e mesmo se suicidam por não verem futuro, por não verem esperança?
Onde será que começa a minha outra vida - se é que a terei algum dia em paz e bonomia - acabando de vez, toda a sujidade de corpo e alma de todo o meu povo que se vê assim tão mal falado e pior, tão mal amado por todos?...Quando verei o dia em que o Sol entrará em mim, noivando-me, pacificando-me esta angústia e este imenso temor de nada haver, da nada possuir, a não ser uma alma que me grita estar viva...ainda...quando...? E tudo por Alá...Por um só Deus que até parece nos ter virado as costas! Será...?

O Campo de Refugiados
Chamo-me Jade. Tenho dezassete anos de idade. Na minha terra, na minha cidade eu ia à escola e aprendia com professores e guias espirituais, os ensinamentos de Deus. Sou cristã. O que é estranho e muito pouco usual mas a isso se devotou a minha mãe por vias de uma família sua, oriunda da Turquia, na qual também sou por sangue e genética confusa, uma filha de Cristo e neta de um Deus que a tudo acolhe em crime e castigo, sabendo perdoar. Mas corre-me nas veias - pelo lado paterno, a crista muçulmana de um Alcorão que quase fui obrigada a ler, a memorizar e mesmo a...acreditar.
Não quis ser um alvo de disputa e de acervo grosseiro entre o meu pai e a minha mãe - agora ambos mortos por um bombardeamento inclemente na nossa cidade na Síria - e, como tal, acabei em dúbia crença de sentimento, oração e veneração a ambas as vertentes religiosas. Sou assim uma espécie de bicho raro que ninguém gosta e a ninguém faz falta...acho.
Os dias no Acampamento são horrendos. Mas pior, era ser morta. Já nem o sei. Tanto tenho sofrido e penado neste campo onde tudo escorre em maledicência, excrescência e nojeira a céu aberto, que já nem sei se terá valido a pena ter sobrevivido. E depois...o Inverno. Criei frieiras, pé de atleta e tudo o mais o que possam imaginar de mal. As condições são péssimas! Mas tenho de ser grata, tenho de ser fiel ao meu princípio de católico-islamista sem nada a que me queixar, sem nada a que me impor a não ser...sobreviver. Apenas isso!
Os meus pais, coitados, tanto que me preservaram em educação e fora das guerrilhas internas desde que nasci. Tanto que me queriam resguardar das maldades humanas, sem que suspeitassem sequer no que mais tarde se me imputaria. Mas não podiam adivinhar, por muito que o tivessem sabido e, sentido na pele.Talvez pela endémica razão que lhes foi sempre mostrada de guerras e alcofas feitas por desmandos de fronteiras ou limites destas. A minha mãe sabia bem disso, desde que fora trazida como criança de colo ainda, para fora desta nação: o Líbano. Nasceu dois meses antes de ter rebentado a Guerra Civil no Líbano no ano de 1975 e, daí, os meus avós maternos em completa alucinação ou impulsiva tomada de posição, arcando com a filha - e minha mãe - em fraldas, berço improvisado e automóvel atulhado, e lá se fizeram à vida pela Síria - «a terra prometida» onde havia mel, petróleo e riqueza havida (muito mais do que na recôndita aldeia turca de onde eram provenientes). Foi o que consideraram. Mal. Mas só o chegariam a saber até este momento. Na época tudo correu bem. Até um certo ponto. Depois a minha mãe conheceu o meu pai, um rapaz todo espertalhaço e bem na vida com um comércio promissor de baterias e peças de automóveis, conquistando os meus avós com o seu faro para o negócio. Pior, foi a religião; a sua! Os meus avós de índole cristã e ele, o genro, um façanhudo muçulmano que lhes ia roubar a filha; literalmente! É claro que não aceitaram de ânimo leve mas depois...bem, depois nasci eu, ou seja, fui «encomendada», precipitada - e em certa medida - levianamente concebida pela minha mãe, que assim achou ter sido a melhor maneira de tudo ficar resolvido de uma só vez,  ainda que, com esse seu avançado gesto de tudo querer, muito tivesse arriscado a não ser deportada de imediato para a Turquia. E tudo foi superado ou ligeiramente amansado então, no que o meu pai teve de lhes asseverar na altura, de que não era fundamentalista nem nada que se parecesse, quebrantando os meus avós sobre as suas boas intenções ( após muitas lutas e encontros desavindos dele com ambos). Depois, em crescimento meu, brinquei, estudei e fui uma criança feliz. Muito feliz. Nada comparável a Nur, a criança que me vê como uma mãe ou irmã mais velha e me segue para todo o lado aqui. Também ela é órfã e tudo o que quer, é que eu lhe cante à noite para adormecer, querendo esquecer talvez, as explosões que nos seus ouvidos de menina pequenina ainda ecoam, por tanta crueldade, por tanto sangue derramado.

A Triste Realidade
Somos muitos aqui. Demais. Há quem fale que já somos um milhão de refugiados. As condições são péssimas e não há perspectivas de algo mudar, de algo se instaurar em mudança ou melhoria de recursos. Eu sofro. Todos sofremos. Muito. Desde o fio nocturno que nos engelha o corpo e todo o ser, aos ventos cortantes de poeiras e malefícios que nos entram na pele e por todos os poros, por todos os orifícios, deixando-nos quebrados e sujos de tanta secura desértica. E água, escasseia. Escasseia tudo. Desde os bens essenciais alimentares aos de higiene e eu que sou tão limpa, tão asseada, aqui me vejo despojada de tudo...até de dignidade! Quando me vem o período - na pior fase da minha vida - sinto-me como que amaldiçoada por uma doença peçonhenta e sem brio, pelo que até isso temos de esconder nos demais que se servem do nosso sangue putrefacto (dizem eles) para fazerem feitiçarias. «Eles» são os maus. São os que se camuflam de amigos e depois nos devassam a vida,nos violam, nos sequestram às suas vontades e desejos, abrigos e desatinos; e nós (as mulheres) não podemos falar. Não devemos falar. Ou somos mortas! E eu quero viver! Tenho de viver!
As latrinas são poucas para tanta gente. Os desinfectantes também. Os antibióticos esses, são mercantilizados numa espécie de mercado negro em que tudo até já se tornou um hábito, uma normalidade - de dentro e fora do campo - em mestria de quem mais tem ou de quem mais deve, para ter (ou submeter-se) à vontade dos «grandes» de armas na mão e imposições suas sobre nós, os refugiados.
E tudo isto é muito triste, muito triste mesmo!
Bashar al-Assad há cerca de um ano (mais coisa, menos coisa...) que está a ser ajudado pelo Grupo Xiita Libanês Hezbollah e eu não sei, sinceramente, se isso é bom ou mau, até pelo simples facto de que a informação que aqui chega ao Campo de Refugiados é muito limitada. Ou nula. Nunca sabemos a verdade. Se, o que nos dizem é certo ou errado, mentira ou verdade corrente que no Ocidente já sabem e empolam ou desprestigiam, consoante os interesses instalados.
Havia tanta esperança que algo mudasse...tanta...mas nada mudou. Nada! O excelentíssimo senhor do ACNUR, (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) na pessoa representativa do português António Guterres (disseram-me) vinha em auxílio, prestação de serviço e préstimos seus, mesmo a nível individual...condoer-se com a nossa sorte ou desdita de estarmos a ser ou não protegidos, ajudados, bem alimentados, bem cuidados e...enfim, repostos nesta vã condição de sobreviventes numa terra não nossa mas que, nos acolheu em seus braços sem ter grandes condições ou recursos para isso. Albergar um milhão de pessoas - metade das quais, crianças - não é tâmara doce, como se diz por aqui. Na terra deste senhor, diz-se «pêra doce»...pois que seja; ou não!
Soube-se dos muitos esforços que a senhora Ninnete Kelley - a representante do ACNUR aqui, no Líbano - fez a tão nobilíssimo senhor e Alto Comissário da ONU para os Refugiados da nossa triste situação. E fê-lo bem, penso. Relataram-me de que foi incisiva e, directa, em tudo o que nos aflige e carece neste ( e noutros!) Campo de Refugiados, que mais parece uma lixeira a céu aberto e que, só as tendas brancas disfarçam - de tanta sujeira maldita de uns e outros - no fundo, nos seres que somos, humanos pois, mas desumanos em muitas outras coisas. Assim como a minha querida Nur - a criança de que vos falei - existem outras milhares que não vão à escola e não têm qualquer tipo de ensinamentos nem sequer em avença, de nestas se criarem hábitos e comportamentos mais abrangentes - ou sociáveis - pelo que têm medo até de saírem das suas tendas. E a tudo este senhor ouviu...e a tudo corroborou em pesar e lástima sua, maior ainda do que a da Angelina Jolie que também por alguns campos andou em igual homilia internacional. Minha pobre Nur, que já amo como a uma filha...como lhe explicar que eu não tenho futuro algum...? Como lhe poderei assegurar o dela...como??? Será que irão ouvir o senhor Alto Comissário da ONU...irão??? O meu Deus, o Deus de todos nós em forma de Alá ou de outro qualquer, será que mo é capaz de dizer...? Dois Milhões e Seiscentos Mil Refugiados Sírios não será um número que os convença disso...? Será...? Fala-se em dois mil e quinhentos novos refugiados por dia - e de novo as crianças...Senhor... - em que a UNICEF é testemunha de todo o tipo de carências e faltas em si de direitos e sonhos, sem que nada nem ninguém faça alguma coisa...será que estou enganada? Será que é desta vez que, por ter vindo cá tão alto dignitário, o meu povo vai ser libertado...? Nós vamos passar a viver em paz e mesmo, as facções antagónicas - os que apoiam e os que se opõem  a Bashar al-Assad - virem a dar as mãos em jactância e arrogo de disparos para o ar em cumprimento de vitória de ambos os lados, numa sua união e confraternização...será? Poderei acreditar nisso e levar comigo a minha pequena Nur que, não tendo nascido do meu ventre, já é tão minha como a minha amada Síria de coração, peito e aprumo em futuro próximo...? Digam-me que sim, e a tudo sobreviverei, a tudo! Até mesmo ao despojo de mulher que agora sou, menina ainda, mas velha...muito velha, por tudo quanto já vi, por tudo quanto já passei na vida e...neste imenso, vasto e lastimoso Campo de Refugiados que não é a casa de ninguém mas antes, uma cerca de arame farpado - de todos - em prisão efectiva dos muitos que aqui se acotovelam, só para não morrerem assim...sem nome, sem bandeira e sem nação nenhuma! Não quero isso para a Nur nem para mim. Quero lutar, quero viver...e quero um dia amar...ou saber o que isso é! Um dia talvez...dentro ou fora da minha amada Síria, mas é isso que quero! Ser feliz e...com a Nur do meu lado...para sempre... e em paz!

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