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terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Interminável Fuga


Cidade de Aleppo - Norte da Síria

Até quando poderei fugir desta guerra? Até quando poderei fugir destes destroços que me pisaram o corpo e ensandeceram a alma, até quando...? Sobrevivi a tudo: à violência, aos bombardeamentos, à violação e até mesmo à encriptação que fizeram do meu nome e da minha identidade e de toda a minha proveniência genética, originária de tantas descendências, de tantas ramificações que nem o mais piedoso Deus ocidental, ou o meu Alá oriental poderiam recuperar na dissecação de alma em que agora me vejo. Sobrevivi. Mas morri. Por dentro.

E agora...que poderei eu fazer se estou só? Para onde poderei ir? Para onde me poderão levar em carga emocional maior que o Hezbollah? Para quando o término de tudo isto...? Para quando o mundo sentir que também nós fazemos parte dele sem sermos escória ou bocados despedaçados de tanta inglória luta, de tanta luta e tanto sangue derramado por causas perdidas, por causas desistidas de um povo que foge à presa do seu país...?
Que fazer agora, por Deus de todos os deuses juntos se nada mais há que não espúria lamentação sobre cadáveres, sobre despojos, sobre almas que um dia até foram mais, muito mais do que simples vícios e sonegações a seus próprios princípios...? E eu, que sou mulher, ah...como sei disso, e como isso me é cruel e traiçoeiro, eu...que venho de longe; eu...que venho de Aleppo...

Os Anos Malditos
Acordei com um som intrépido, fugaz mas sibilante que me perfuraria os tímpanos, tal a dimensão da sua crosta maligna de todos os demónios, de todos os Satanás da Terra.
Acordei. Estava dolorosamente quebrada, entorpecida e retorcida por entre escombros, por entre paredes vazias de entulho, betão e pó, muito pó. Não entendi.
Um morteiro. Mais um. Desta vez foi letal. Acabou com as réstias do que já não soçobrava em meios, recursos, condição e sobrevivência no meio desta terrífica cidade de Aleppo, cidade-mártir de todos os que dela quiseram fazer sua medalha de honra, sua passagem de mérito e até mesmo seu estandarte de compromisso de uma perfeita camuflagem de mentira; tudo Aleppo viveu e eu, com ela, vivenciando este terror, experienciando todos os males do mundo, nesta minha outrora bela cidade do norte da Síria, a minha bela Síria.
Tudo destruído. Tudo indescritivelmente obsoleto e, absurdo, numa contemplação demoníaca das ruínas em que tudo foi envolvido em cimento armado irremediavelmente perdido, capturado, humilhado e vazado como as nossa almas sírias de todo um povo que chora por entre as pedras, por entre o nada de toda uma cidade que já foi muito, que já foi tudo para cada um de nós.
O horrendo, o Inferno e tudo o mais que nem no Alcorão ou na Bíblia em Apocalipse eu pude ler (ou compreender) de almas insanas, dementes e, ferventes, de uma vingança desmedida que nada nem ninguém parece pôr cobro. E eu sofro, como sofro. Envolta no meu chador azul mar, esse azul de um mar e um céu que jamais sentira (pois era vetado às mulheres apreciarem um e outro sem olhares vizinhos ou sem cumplicidades familiares) e agora, negro, tão negro que me dava a certeza de toda a escuridão futura que mais tarde haveria de me ver ser adulterada, abusada e vilipendiada como a mais negra noite da minha vida ou a história mais negra que eu pudesse um dia contar...

A Mudança
Por muito que me tivesse debelado por ficar, as evidências mostravam o contrário. Tinha de fugir; tinha de alcançar outros meios, outros caminhos, outros destinos que não aquela morte em vida de tudo se me morrer à minha volta. E como o passado estava agora distante, pensei eu, tão distante como as tâmaras das mais altas palmeiras de uma doce e lânguida paz que jamais sentiria se acaso a minha teimosia me ditasse ter de ficar. Mas a razão venceu e o coração anuiu: tinha de partir.
Ah...como fui feliz, tão feliz, naquele terceiro andar direito virado ao Sol, virado ao mundo. E o mundo era meu! Ah...como eu era feliz e não o sabia...eu, e todos os demais. E como é tarde para reconhecê-lo agora, agora que já nada tenho de meu...
Vários morteiros deram cabo da minha cidade: o meu bairro, o meu querido bairro onde nasci, brinquei e aprendi as primeiras palavras... e posteriormente (e infelizmente...)-o bairro de Hajar al Haswad (zona sul da capital) para onde nos transferimos, eu o meu esposo, o meu pai a minha mãe e a minha idosa avó, pensando que na capital as coisas se compunham, mas não. Foi pior. Foi trágico!
Damasco e Homs (assim como em Tadamun, na mesma área), foram literalmente mortificadas por toda a artilharia entre os rebeldes e os soldados afectos a Bashar al Assad. O zunido era tanto que mal dava para se perceber quem estaria a ganhar ou a perder, mas sabíamos de antemão quem mais perdia: nós, o povo sírio! Morríamos ás catadupas. Morríamos ainda em vida, se não pela água salobra que ingeríamos e pela sequencial difteria que mais tarde nos faria sofrer horrores (assim como às febres que teimavam em não estancar, pois não havia socorro ou medicação à mão que nos livrasse de tanta maleita) e, por corpos em putrefacção e latidos de cães esganados e outros que, levados pela raiva em doença maldita sua e fome de muitos dias, se atropelavam e matavam mesmo entre si, na demanda da obtenção de corpos esventrados, estropiados - e ainda quentes - aquando os morteiros incisivamente lhes caíam em cima; um horror! A fome grassava; em todos nós. Chegámos a pensar matar um desses cães para saciar a fome e beber dos esgotos para saciar a sede e...matar até um dos nossos para saciar o ódio, a loucura e a advertência de quem se negasse a cumprir as novas regras que ditavam ter-se de se sujeitar à mais infiel ou indigna condição humana: a de se roubar os defuntos ou mesmo os moribundos como moeda de troca por algum pão, alguma bênção para o estômago.
Foram estes os meus dias. As noites iguais. Ou piores! Ouvia-se os guinchos bárbaros de quem matava o inimigo e clamava território; ouvia-se os outros, os dos gritos lancinantes de quem perdera alguém íntimo ou indefeso perante as armas ou o gáudio asqueroso de quem se gabava ter mais mortes acumuladas como se uma honra ou medalha de mérito estes a si concedessem sobre tanta dor, tanto sofrimento e tanta mortandade! Mas era assim...

A Fuga
Depois de um violentíssimo incêndio que me levou parte do apartamento e de todo o restante edifício que eu tentava estabelecer limpo e incólume dos ataques e dos bombardeios, nada mais restou do que a minha angústia de ver que não conseguia juntar mais do que um punhado de coisas que enchiam apenas uma única mão. Nada mais. A roupa do corpo e, a fé (se é que ainda existia alguma...) de tudo o que para trás ficara: pai, mãe e avó...todos mortos, todos jazigos da sua própria escolha sem opção e sem diversidade que não fosse o fugirem das bombas que caíam aquando se arriscavam a ir (corajosamente) ao mercado do qual já nada sobrava a não ser umas tábuas incineradas (fumegantes ainda...) onde há pouco tempo se exibira frutas e legumes frescos. Parecia uma roleta russa, daquelas em que ou se foge e se escapa ou se é atingido sem se poder fugir mas numa finalidade à qual raramente se escapa também: a fome, a muita fome inserida em todos nós como lepra ou peçonha que nos corroía os ossos; todos.
Pensámos fugir através dos caminhos árduos de fogo, batalhas e atiradores furtivos até ao Aeroporto Internacional de Aleppo (de novo), mesmo que estivéssemos a ir para a boca do lobo, pois na véspera houvera violentos incidentes e vários incêndios provocados gratuitamente (e insidiosamente) nas imediações de um prédio do Serviço Secreto - disseram-nos. Mas não havia alternativa.
Numa noite de domingo em que tudo parecia aparentemente calmo, uma chuva de morteiros abateu-se sobre o acampamento onde nos refugiáramos - eu e o meu esposo Moammar - fazendo oito mortos entre civis (onde os rebeldes enfrentaram combatentes da Frente Popular para a Libertação da Palestina - Comando Geral (FPLP-CG) de Ahmed Jibril, aliado do regime). Foi então que a decisão foi tomada: Antes morrer em busca da Liberdade que morrer às mãos dos párias que nos trouxeram esta guerra para as nossa vidas, admitimos ambos.
Até aqui estivéramos - eu e o meu esposo - refugiados no acampamento palestiniano de Yarmuk, e isto, por o meu esposo - Moammar - ser de origem árabe (muçulmano) e, seguidor de Alá, muito diferente de mim que era cristã e, como tal, tinha efectivamente um alvo direccional nas costas ou na cabeça, se acaso soubessem das minha longas origens ocidentais, ainda que o meu nome - Sira - não mo denunciasse desde logo; mas lá chegariam...
As decisões tinham de ser rápidas. Quanto mais o tempo avançava, mais as nossas vidas estavam em perigo. Eu queria ser médica. Andava a estudar para isso. Os meus pais haviam-me incentivado nesse sentido e, por isso, estava completamente estimulada para vir a ser uma profissional de sucesso, ou pelo menos com afinco, brio e responsabilidade sobre quem teria no futuro sob as minhas mãos em processo de tratamentos e cura, se possível. Fora sempre o meu maior desejo, mesmo que o meu recente esposo para aí não estivesse virado, ou seja, não mo tivesse igualmente abrilhantado, pois as suas raízes muçulmanas gritavam-lhe o contrário, por muito que já compusesse em si uma certa ocidentalização tanto no vestuário ou tecnologias adquiridas como em certa mentalidade havida. Mas tudo mudou. A guerra muda-nos, e...não é para melhor!
O meu amor, aquele por quem eu daria a vida (e um dia cometi o erro de lho dizer), julgou-me na praça pública familiar e, social, de quando lhe remeti ter o desejo franco de poder abrir um consultório nas imediações de Damasco. Que não, era um ultraje. Homem que é homem sustenta a sua mulher e não o contrário, pois ele, apesar de ser formado em engenharia electrotécnica, ainda estava pendente de um trabalho a tempo inteiro por não haver grandes concessões aos naturais sírios sobre o que nos preteriam pelos aprumados estrangeiros, e isso, enfurecia-o.
Mas era um bom homem. E bonito; muito bonito! Alto, elegante e com uns olhos de fulminar em paixão qualquer mulher que se lhe atravessasse ao caminho. Era um pedaço de mau caminho, como na gíria popular tantas vezes a minha mãe (à socapa do meu pai) admitia, na beleza ímpar deste meu ainda muito oriental esposo de seguimentos de Alá. Mas eu adocicava-o. E muito!
Longas as noites, doces e quentes, voluptuosas e sem freios de sensualidades descabidas (pois que dentro de portas tudo nos era permitido...) e eu era a sua mais bela amante, a mais doida, a mais estouvada Xerazade de contos ainda por inventar. E ele, também! Amava-o, meu Deus, meu Alá, meu Tudo, como eu amava aquele meu homem e como tão cedo ele de mim partiu...

A Esperança no Ocidente
Mas antes daqui chegar tenho de descrever o meu púlpito sacrificial de tortuosa apanha que nenhuma Messalina deveria deter (ou verter) em si. Fui devassada da minha dignidade, da minha identidade e até da minha autoridade em urgência de direitos humanos que por aqueles árduos caminhos não houveram. Fomos roubados. Espoliados, torturados, massacrados, violados e atirados como lixo às feras - eu, e o meu amado esposo. Dos doze mil euros (seis, por cada parte ou indivíduo) que em doloroso sacrifício poupámos em avença de nos deixarem entrar num dos muitos barcos à vela de céus e mares desamparados, pois que ninguém estaria preparado para se fazer a uma nova morte e desta vez por entre água salgada, frio e um horror de batalhas por entre a doença, as fezes, a urina e mesmo os olhares concupiscentes de certos algozes que nos saqueavam até a alma, tudo fomos aceitando. Só não estávamos preparados para a traição e para a volatilização de princípios básicos que diz: não mates aquele que ainda te vai fazer falta no futuro. Connosco, não houve isso, não houve nada: só traição e morte!
Fui violada. Por quatro, cinco ou seis homens...já não sei. Variavam as idades e também os odores e os dentes cariados, para além dos instrumentos fálicos que me esventravam sem dó nem piedade. Tentei não morrer: de dor e de vergonha. O meu esposo já não assistiu. Depois de neles ter confiado a sua parte da quantia, riram-se entre si e, de imediato, degolaram-no à minha frente.
O meu mundo ruiu. Queria morrer mas também sobreviver; e tudo isso num misto controverso apiedado mas também inclemente (seria orgulho ferido ou estupidez de quem sabe que vai morrer...?) de lhes rogar por mim, de lhes rogar pela minha vida como ser inferior que eu era ou pelo menos, ali me sentia perante eles. Rebentaram-me as forças, os gritos, os sons que ainda podia evocar de não me penetrarem como se me quisessem apunhalar com os seus pénis odiosos, enrugados, mal-cheirosos e vertentes de toda a maldade humana. Tentaram sodomizar-me. Mas...talvez por vias de uma Santa que a minha mãe sempre me obrigara a trazer comigo por entre as minhas agora modestas vestes de rameira e refugiada sem eira nem beira, um batalhão de homens (quem seriam...?) alvitraram algo cáustico e pungente, pois que todos se puseram em sentido, mais que não fosse pelas rajadas de uma sua Kalashnikov (a metralhadora do líder, supus) que se ouviu de seguida, impondo o silêncio e o respeito de sentinela naqueles sujos e abjectos homens de nenhures. Salvou-me.
Inacreditavelmente, não morri. Mas quase. Levei dois dias para que uma hemorragia não natural estancasse de mim e fiz-me à estrada. Chorava, ah, por Alá, como chorava...ou por Deus, o Deus da minha mãe que dizia que na terra da sua avó (e minha bisavó) esta por lá tinha aparecido. E eu acreditei, pois achei que não tinha sido aquele homem a salvar-me mas, pela santa imagem que eu detinha junto ao peito de uma santa que se dizia chamar-se de Fátima ou Fatma como na Síria se diz.

Agora estou bem. Mais ou menos...mas com a certeza que ainda vou ser feliz. Atravessei o mar, atravessei o que restava do Inferno na minha vida, senti. Bebi a minha própria urina para poder sobreviver e, estando hoje grávida (não sei se do meu esposo se dos que me violaram...mas pouco me importa) no que ainda terei forças para, depois de tanto caminhar, de tanta porta fechada, e de tanta maldita diáspora havida, eu ainda ter forças para este filho ver criar. Fim de citação. Tudo isto se passou em 2012/2013.

Estou em paz. Tenho o meu filho comigo e toda uma vida para viver se conseguir esquecer a do passado. Continuo a ser cristã e, agora, sem ter de me esconder ou fazer perigar a minha vida ou a do meu filho que vai fazer dois anos de idade. Não sei se um dia lhe contarei a minha história...não sei.
Vivo numa pequena e rural região do sul da Europa onde me acolheram e sou muito bem aceite, ainda que por memória, respeito e certa saudade em relação ao meu muçulmano esposo há dois anos falecido, eu tenha pedido permissão para entrar numa mesquita da capital, levando orações e toda a minha devoção de mulher sua na Terra. Não o esqueci, nem podia. Foi o meu maior e único amor da vida, no que para sempre lhe reservarei a minha lembrança sobre o meu coração. E peço-lhe que um dia me receba e ao nosso filho que é nosso por direito, pois guerra nenhuma mo vai retirar de mim nem dizer que ele não é meu e teu, meu esposo. Por Alá, e que este te guarde, e pelo meu Deus que comigo tem reforçado os dias e, as noites, em me fazer vencer como mulher ocidental em práticas, princípios, regras e condição de refugiada que sou, a minha bênção, a quem já me abençoou também por me ter dado uma nova oportunidade de vida. A ti, meu amor...descansa sem mim, que em breve te assumirei naquele vasto e belo dia em que Ele me deixar chegar a ti. E quanto à Síria, à nossa amada Síria, que Alá a proteja, e que todos os povos do mundo não sofram nem vejam a morte como eu a vi...não de foice na mão mas de faca afiada, de sabre empunhado e, de uma desfaçatez humana tão animal e tão execrável, que jamais esquecerei os rostos de quem esta levou...agora, vou dormir em paz meu amor, mas acorda-me por favor... se a paz voltar à nossa amada Síria, eu te buscarei, pois para lá voltaremos um dia...

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