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sexta-feira, 18 de março de 2016

Eu e o Meu Pai! (I)


Eu e o Meu Pai... algures no pensamento e, vivência, de alguém...

Nas pontas do ballet da vida, eu ergui-me perante ti, pai. E tu - Meu Pai - elevaste-me em confiança, sonho e alegria perante essa mesma vida que, agora, para mim se abria...
                                                                                                         - A Ti, Meu Pai -

Eu e o Meu Pai
O primeiro olhar: Assim que te vi, meu pai, senti que jamais me perderia nos caminhos da vida; em protecção, cuidados e desvelos que só um pai sabe, mesmo que por vezes passe e ultrapasse certos limites dessa outra vida que, não sendo fácil, também não o é de propriedade alguma sobre quem nos deu a existência ou se diz nosso progenitor. Mas isso, é algo que, supostamente, e de forma por vezes errática ou disforme, nos quer tanto que chega a sufocar, nos ama tanto que chega a consternar por considerarmos que o tal cordão umbilical de nossa mãe se tornou extensível e, amovível, às mãos peludas e fortes de nosso pai; para sempre!

Amei-te tanto, meu pai! Tanto que chegava a doer. Foste o meu maior e mais forte pilar ancestral de toda a minha débil e inconstante vida, desde que senti o teu cheiro, a tua face na minha, a tua forte mão em palmada assente no rabo; pois, que não só de mimos se vivia então... mas, recordando hoje isso, minimizo a franqueza do teu gesto, a despudorada submissão a que uma filha tem sempre de se converter na mais pura franquia ou sedução, perante um pai que tudo sabe, que tudo ensina e que tudo ordena. Eras o meu pai querido; o maior, o melhor, o mais sábio, o mais empreendedor, o mais «Tudo»! Incomparável e assumidamente o mais implacável ou indestrutível alicerce (mais sólido que betão armado) em que cimentando o meu púbere crescimento, me deste as asas necessárias para que eu as desenvolvesse, as emanasse em puro ócio e encantamento de princesa que então me julgava.

E, nesse meu castelo de fadas e orbes, pequenos anões e todo um mundo que era só meu, eu te deixei entrar, como se nessa feérica introdução do fantástico, tu fosses a minha maior luz de iluminação e, conhecimento, além tudo o que eu podia imaginar que tu seguravas e eu dependurava, como centelha alumiando um outro caminho, um outro trilho mais perene de inesgotável certeza de estares sempre lá, para mim. Sempre. Mas sempre, é uma palavra não-eterna, inversamente ao que esperamos desta, sem que haja magia ou imortalidade em si - ou em ti, meu pai.

Foste a minha candeia acesa, a minha direcção robusta por todas as situações havidas, por todas as ilusões vividas em que no teu ombro chorei, em que no teu colo afaguei tantas das minhas mágoas, até mesmo às escondidas de minha mãe, tua mulher, que por vezes denunciava certos ciúmes de nossa tão grande cumplicidade. Ensinaste-me as primeiras letras, as primeiras palavras com a infinita paciência de um mestre ancião, de um loquaz sabichão que tudo sabe, que tudo empina do alto da sua sapiência-mor em condição absoluta e, irrefutável, de qualquer contestação. Eras o meu professor, o meu impulsionador, até das coisas incompreendidas ou mal explicadas da vida. Ensinaste-me a andar de bicicleta (mesmo que eu tenha dado um enorme trambolhão e ainda hoje não te perdoe o não teres ido atrás de mim, segurando na parte traseira desta em total entrega tua de me não deixares, nunca...).
Ensinaste-me a dar o primeiro murro (eu sei, não foi nada bonito, ao que a mãe depois me explicou que, não tendo de se dar sempre a outra face, também não se tem da andar à bulha) se nos dão um empurrão ou entram em briga, ao que hoje se designa de «Bullying», também não se deve partir para a enseada de porrada propriamente dita, chegando a casa com o sobrolho deitado abaixo ou com a dignidade feita em frangalhos por termos sido mais afoitos do que defensivos ou, atacantes e mal sucedidos...

Meu Pai: foste tudo para mim. O mais enérgico, o mais veloz, e até o mais bonito, do alto dos teus quase dois metros de altura e um porte de toiro bravo que ainda hoje é lembrado - e relembrado - por quem te era mais afecto, se algo se te colocava no caminho ou se algum menos propósito se te defrontasse em honra familiar ou ameaça velada sobre os teus. Se tivesses ido à guerra do Vietname, terias sido condecorado e encimado como o mais bravo guerreiro que não deixa ninguém para trás. Não foste, nem a essa, nem à colonial por terras de além-mar, pois que tinhas de dar sustento a tantos e tantos irmãos por cá, em terras de Portugal. Eu sei, estou a generalizar, mas quantos pais e quantas mães não em vão rezaram, choraram e lastimaram a sua má sorte desta guerra o país enfunar como a maior honra de todas em matar para não morrer, nas sombras de um Estado Novo que tudo arcava, que tudo protelava, por vozes desavindas de aliados que queriam que esta guerra acabasse.

E, se ficaste feliz por eu ter sido rapariga - no que me livrava de ir à guerra - também não deixaste transparecer um pouco dessa tão morgadia mágoa de tempos idos e, infindos de tua prosaica prole, eu não ter sido a sequência de filho varão para te seguir os passos, ir contigo pescar ou caçar, ir ao futebol, ao basebol, ou a outras modalidades desportivas que tão bem desejavas seguir. E até ao pugilismo, área desportiva que ainda hoje endeuso em mim (coisa estranha, não é?) por tanto me teres levado aos circuitos da urbe de campeonatos regionais em que o murro e o soco eram campeões e eu, qual gnomo dançarino em espanto e maluquice, ia fervendo em mim as hostes de que a violência era só de fora de portas, não ali, em ringue suado de dois corpos e duas mentalidades, acabando estes por um aperto de mão que jamais compreendi para quem tanto se debatia e esmurrava assim.

Foste ao Grande Canyon comigo. Em sonhos. Mas foste. E ao Jardim Zoológico. E às matinés infantis em que eu só estava quieta quando as luzes se abriam e tu me compravas um chapéu de chuva de chocolate, acalmando ânsias e calamidades de me tornar daí a pouco uma coisa gorducha e ruborizada por mais calorias do que as devidas. E passeaste comigo nos entraves da vida, aqueles que nunca pensamos passar, aqueles que jamais sentimos aforar porquanto os tempos da infância que nos ditam que somos eternamente protegidos, que somos imortalmente intocáveis ou inexoráveis de qualquer moléstia, de qualquer agressividade ou violência inquirida. Até aí tu me seguraste...

Um dia bati-te à porta. Abriste-la. Depois de me teres dito que não mais serias para mim aquele mesmo pai que um dia a outro me entregou, para ser estimada e não mal-amada, violentada ou estuporada em vigências malditas que só os demónios sabem impingir.
Mas abriste-la. Para mim. De novo. Sovada e amolgada, ferida no âmago de todas as coisas, mais na alma do que no corpo, envergonhada e inibida, foi como me enlevaste de novo nos teus braços, me recebeste e amparaste e foste tudo o que eu sabia tu seres, sem nada me faltar a partir dali. Foste o meu porto seguro, a minha âncora deposta sobre o fundo do mar em impressionante força matriz que nada derruba, que nada depõe, no que mais tarde me confessaste teres quase morrido por tão fraca e frágil me veres assim: meu pai, tanto que por ti eu tinha por dizer...
Depois de teres resmungado, amaldiçoado - e punido mesmo - por ter feito tão má escolha nupcial, por ter sido tão pouco selectiva ou consensual no mando e desmando de ter ouvido apenas o coração e não a cabeça que tudo nos rege, dei-te razão; como sempre! Foi mesmo uma má escolha!
Mas depressa me viste erguer ou soerguer. De novo. E de novo fui à luta - embrionária ainda - mas forte e concisa com o que me determinara a mostrar-te, para que de mim e, sobre mim, depusesses esse teu verminoso orgulho que tantas discussões, tantas humilhações ambos nos conotámos, coarctando direitos próprios de pai para filha e vice-versa.

Foste, alegadamente, o mais impenetrável ou incorrupto juiz sobre a minha causa e, a tua fidelidade, aos teus princípios, aos teus desígnios, que não ceifaste de ti; mas, no fundo, acabaste reconhecendo que ser pai é mais, tanto mais que de ti se assomou, fazendo-te quebrar promessas e veleidades sobre o que em filiação pungente me tinhas já condenado em cela sem chave, sem saída possível. E, sobre esta - cela e solução - me deixaste apodrecer como Edmond Dantès ou Conde de Monte Cristo (do célebre escritor, Alexandre Dumas) numa ilha qualquer. Numa ilha que não tinhas intenções de visitar... e muito menos, fazer reverberar ainda que ao longe... (mas o teu coração falou mais forte e depressa desta me libertaste!). Novamente.

E por falar nisto, lembro agora que, comigo privavas de teus sentimentos, velhos eu sei, mas ainda assim belos, tão belos que ainda hoje recordo, sobre filmes e séries televisivas que ambos dilacerávamos, dissecando como tertúlia nossa de grande profundidade e que, ia desde o «Sandokan» até aos mais eruditos de Ingmar Bergman, aquele estranho mas inolvidável realizador sueco que nos transmitia mensagens tão simples ou fáceis de compreensão quanto o Universo no seu todo ou, hoje, a explicação cósmica através da mecânica quântica. «Igual»! Ainda hoje tento traduzir certos diálogos sobre isto. E, se em relação ao Sandokan a coisa era de índole leve, em que eu era a sua princesa inglesa, deixada ao mar e depois morta (em que eu chorei rios de lágrimas sem que tu nada pudesses fazer...), já no caso de Bergman a coisa complicou-se. Foi a minha fase rebelde: dos charros, das experiências sexuais furtivas, aos mais loucos eflúvios sobre um esquisito movimento hippie de sons e aromas que vinham dos lados de uma Califórnia endemoninhada...

Usava calças à boca de sino e fumava charros. Qual a novidade? Todos (ou grande parte dos adolescentes da época) o faziam. E éramos os maiores. Do nosso bairro!
Dei-te muitas dores de cabeça, eu sei. A entrada na idade parva - a da adolescência e irreverência própria de quem não tem muita cabeça ou siso - foi uma época sã (e farta!) em deslumbramentos de alma. De todas as almas! Dei-te muito trabalho, reconheço. Hoje reconheço.
Um dia fui parar à choça. Ou seja, fui parar à prisão; eu, e mais uns quantos, não pelo que fumávamos (nessa altura os polícias ainda eram mais imberbes ou talvez ingénuos para tanta actividade tão pouco pueril) mas por vias de atentado ao pudor, segundo constara na contra-ordenação policial por factos ilícitos e, censuráveis (em libertação endógena de feromonas de uns e de outros, rapazes e raparigas que se beijavam, apalpavam, trocando carícias na via pública) e que, por ralhetes ou singela admoestação - e uns quantos avisos de tal não voltar a suceder em reprimenda oficial e filial - tudo voltaria aos eixos. Até à próxima vez...

Não ficou nada na carteira criminal. Um susto. Naquele tempo, o ter-se uma mancha no registo criminal equivaleria ao ter-se morto a mãe. Ou o pai; ou a família toda! Uma vergonha, era o que era! Uma lástima, uma sem-vergonhice e um autêntico desplante (segundo palavras de meu pai) em que a filha quase deserdada de seu testamento e sangue honorífico se veria a braços com a desonra e a não inimputabilidade de se fazer à vida sem mais acordos consigo: assim, sem mais. Pior do que entrar para uma casa de correcção (nesses tempos a coisa não era para brincadeiras!) seria o exílio forçado de se poder entrar por um caminho sem regresso desde um gulag siberiano até aos mais fiéis cordelinhos paternais que jamais reconsiderariam em que para si voltássemos tal como filho pródigo da Bíblia. Lá em casa não se perdoava; desculpava-se - era mais consensual. E jamais se esquecia uma falha. Nunca!

E tu, meu pai, estiveste lá. Comigo. Ao meu lado. E eu, tal como peru em véspera de Natal, trémula e cabisbaixa, prometi-te melhorar e, se Deus ajudasse (Deus estava sempre presente nestas ocasiões) haveria que pôr tento e juízo nesta cabeça tonta de rebeldia malvada que tão distante da dos States estava; se por lá se ouvia a Joan Baez, e Bob Dylan em total ou indefectível deferência - ou em mobilizada e activa irreverência política - por cá, os sons eram mais plácidos e talvez não tão exacerbados ou, em menor consciência politica de subversão, ao som dos Rolling Stones ou de um ainda Cat Stevens (que não Yusuf Islam, na repentina epifania de mudança de nome e, ideologia religiosa que até pedia a cabeça, literalmente, do então Salman Rushdie, por sua obra dos «Versos Satânicos»). Para além do que se dançava e, roçava de corpos, ao som dos fleumáticos e quiçá harmoniosos Bee Gees em danças de salão, garagens pessoais (ostensivamente personalizadas) ou ainda nas «Boîtes» da época, em que fechavam «apenas» às duas da manhã. Velhos tempos...

A conversa é como as cerejas, eu sei. Daí que não possa deixar de falar nos sons, nos outros sons que de ti eu tive, aquando pegaste no teu primeiro neto ao colo. A quando olhaste para mim e te viste retratado em génese e soalheira condição de te continuares em vida e, perfeição, naquele esgar que te parecia um sorriso, naquele enrugado e pequeno corpo que te parecia um cordeiro acabado de nascer. E presenteaste-me com o que de melhor de ti havia. O teu amor por mim, incondicional, aberto e sem limites de um infinito universo só teu. Envelheceste. E eu, acompanhei-te nessa outra caminhada, nesse outro percurso ao som do Nat King Cole, Frank Sinatra (the voice) e outros. E, olhando para mim, soltando um simples e breve sussurro em sorriso desprendido da vida, disseste-me:

Filha, foste o melhor que me aconteceu. E, deixando cair a tua mão sobre a minha, partiste deste mundo; e eu, sentindo que te devia mais, tanto mais do muito ou todo do que não te disse em vida, deixei-me morrer um pouco, morrendo parte de mim. Mas ainda ouço as tuas palavras, o teu riso alegre, ou mesmo a tua rabugice em não admitir ter de ingerir a medicação recomendada.
Pai, foste o que então previ de melhor e mais seguro em mim: foste a minha pedra angular de toda a minha vida, mas isso, já o sabes: agora e sempre! - Amo-te muito, Meu Pai!

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